Além da Sapucaí, com um mundo de turistas, não tem jeito: o Rio vira praticamente um carnaval de rua. Com a volta desenfreada pós-pandemia, a Liga Carnavalesca Amigos do Zé Pereira está em seu 11º ano colocando nove blocos entre a Zona Sul e o Centro.
Quem está por trás da organização da Liga é Rodrigo Rezende, 49 anos, o típico carioca-zona-sul, nascido no Leblon e criado no Jardim Botânico, apaixonado por praia, surfe e, claro, carnaval. Filho de Luiz Eduardo Rezende, jornalista que foi jurado no Sambódromo por 27 anos, Rodrigo chegou a fazer faculdade de Letras e Jornalismo, mas percebeu a tempo que seu negócio era produção cultural; então começou a carreira com a agenda de shows do Circo Voador (também foi integrante da diretoria da lona da Lapa, entre 2004 e 2009).
Começou ajudando na organização dos amigos e vizinhos do bloco “Vagalume O Verde”, do JB, até 2012, quando teve a ideia de unir vários músicos e produtores independentes que faziam o carnaval. A reunião se transformou na candidatura para presidência da Liga Amigos do Zé Pereira.
Desde então, passou a integrar, cada vez mais, os nove blocos, todos bem conhecidos dos cariocas: Orquestra Voadora, Cordão do Bola Preta, Céu na Terra, Vagalume O Verde, Toca Rauuul, Quizomba, Laranjada, Último Gole e A Rocha.
Para 2023, Rodrigo ainda foi convidado por Rita Fernandes (da Liga Sebastiana) para a direção artística da Casa Bloco, que está acontecendo no clube Monte Líbano, organizando shows e oficinas e também o Carnaval nas Redes, da Prefeitura do Rio.
Supõe-se que o Amigos do Zé Pereira arraste 1,5 milhão de pessoas. Acesse aqui pra saber dias e horários dos blocos da Liga!
São dois anos sem carnaval de verdade. O que você espera de 2023?
Espero um carnaval de reencontro com nós mesmos. É o momento que o carioca coloca a veia artística pra fora, quando vamos pegar o fio da meada do sorriso da vida novamente.
Foram anos duros para produtores de eventos. O que você tem a dizer sobre isso?
Trabalhando com produção cultural, o leque é um pouco mais amplo do que na área de eventos. Felizmente tive dois projetos de gestão que ajudaram bastante, mas muitos abandonaram a profissão. Hoje em dia, vivemos uma bolha de preços altos e mão de obra de qualidade um pouco escassa. As coisas estão se ajeitando aos poucos, e o carnaval de rua é uma das principais molas propulsoras da cultura e da economia criativa em geral.
Como você faz nesta época para administrar tudo? São nove blocos, além do Casa Bloco e o programa da Prefeitura… Como fazer tudo bem?
É bastante difícil mesmo. Preciso de uma equipe de alta qualidade em todas as áreas da produção. Concepção, execução, gestão, pré e pós-produção, prestação de contas… São muitas demandas, e para que tudo aconteça com excelência, conto com produtores culturais, produtores artísticos e gestores. Alguns estão comigo há bastante tempo; o mais antigo, há 15 anos.
A Amigos do Zé é considerada uma das associações mais organizadas da cidade e com blocos conhecidos. Existe ciumeira ou alguma espécie de competição entre as outras ligas ou é tudo paz e amor? Qual o segredo de se manter nesse lugar e se dar bem com as pessoas com tanta concorrência?
De vez em quando, alguém tem essa curiosidade e me pergunta isso. O carnaval do Rio é extremamente capilar e diverso. A diferença é tanta que, para o convívio acontecer bem, a gente precisa focar no tema comum: a folia. Aí todo mundo se entende. Na Liga do Zé Pereira, a gente não tem ciúmes de ninguém e trocamos com todos. O que não quer dizer que a recíproca aconteça sempre.
A Liga do Zé e a Sebastiana (de Rita Fernandes) se uniram em 2017 para uma festa de pré-abertura do carnaval carioca. Teria vindo daí o convite para a Casa Bloco?
Complementando a pergunta dos relacionamentos e respondendo a esta, vou contar uma curiosidade. No início, havia uma tensão no ar entre Zé Pereira e Sebastiana. A gente tinha acabado de “chegar chegando”, o que gerou uma certa desconfiança. Como antiguidade no carnaval é posto, ficamos tranquilos, trabalhando e entendendo a dinâmica do carnaval de rua em um sentido mais amplo. Essa tensão perdurou por cerca de dois anos, até que nos aproximamos e entendemos que havia muitos pontos em comum e que poderíamos multiplicar o que já tínhamos. Hoje em dia, somos parceiros de projeto. As duas ligas fazem muitas coisas juntas, e a Rita considerou que eu poderia somar na Casa Bloco, por ter toda uma vida de experiência em programação de shows e festivais em lugares, como a Fundição Progresso e o Circo Voador (este é minha casa e da Liga do Zé Pereira até hoje). Rita e eu somos muito amigos além de parceiros de carnaval.
Como driblar crises, quando elas existirem (quase sempre…), principalmente com a falta de verba?
Com união na hora das crises institucionais, e criatividade na falta de verba. Quero lembrar o ano da gestão Crivella, em que tentaram cortar o serviço médico do carnaval de rua. Imediatamente, a Liga do Zé Pereira e a Sebastiana fizeram um manifesto. Convidamos as outras ligas, vários blocos e a imprensa e fomos falar com o vice-governador (na época era o Cláudio Castro) e resolvemos a questão. Imagina o carnaval sem serviço médico… Essas grandes questões em comum precisam de união para serem resolvidas. Em relação à falta de verba, como todo ano é diferente, nós carnavalizamos com as ferramentas que se apresentam. É difícil, mas a gente deixa a crise na seção financeira, e a folia é só alegria!
Reclama-se muito nos blocos, desde cerveja quente e golpes (de furtos de celular, cartões etc.), sem falar da montanha de lixo deixado pra trás. Como você se organiza para cuidar desses detalhes?
sso é um efeito colateral de qualquer tipo de reunião de multidões nas ruas. O Rio não é que nem Salvador, por exemplo. Tudo aqui é uma grande “pipoca”, pra usar o termo baiano. Entretanto, essa democracia, esse livre acesso é o que nos identifica. Os crimes violentos na época do carnaval diminuem muito em relação ao restante do ano, como consta nas estatísticas. Os roubos e furtos dependem do policiamento nas ruas. A segurança pública e a limpeza urbana são feitas pelas instituições do estado e da prefeitura, e de maneira bastante satisfatória na maioria dos casos. O problema é o gestor da vez – carnaval ainda não tem uma política de estado, ainda depende do governante. Temos inclusive um projeto de lei do carnaval de rua esperando ser votado na Câmara do RJ. Quem sabe este ano? Alô, vereadores!
Pela sua experiência, qual a pior e a melhor coisa que pode acontecer num evento de rua? E como contornar?
A pior coisa que pode acontecer é não haver carnaval de rua. Não consigo pensar em nada pior. A pandemia foi muito sofrida pelas mortes e também pela perda de parte da nossa identidade sem a troca presencial com outras pessoas. A melhor coisa é a troca! Então, pra mim, o melhor e o pior estão nesse contato — necessário e fundamental.
A previsão de chuva é grande. Já tem gente cobrando do prefeito a contratação do Cacique Cobra Coral… O que fazer nesse caso?
Em 2020, choveu também. Todo rio tem muita água, inclusive o de Janeiro. Vamos torcer pra São Pedro aliviar este ano, mas, caso não, vamos carnavalizar na chuva, porque o clima é sempre quente!
Sobre o Cordão do Bola Preta, a expectativa é alta, ainda mais com a entrega da faixa de embaixatriz para Tia Surica. Alguma novidade?
Temos algumas! Emanuelle Araújo estreia oficialmente como integrante da corte: é a musa da banda! Também convidamos o Photon Duo, dupla de VJs e designers que desenvolveu uma coleção de moda e também grafismos, que estarão em um painel de LED no trio da banda. O LED também é novidade, é a tecnologia a serviço da tradição!
Quais as memórias que você tem do carnaval, e o que mudou? Como carioca da gema, o que é o carnaval pra você? Poderia comparar as primeiras lembranças com as atuais.
Meu carnaval sempre foi muito mais rua do que Sapucaí. Sempre sabia dos bastidores pelo meu pai, mas saía mesmo para a rua, e não para o sambódromo. Cresci no Jardim Botânico, por isso estava em todos os ensaios do Suvaco, desde os meus 14 anos, inclusive pulando o muro do Clube Condomínio com a turma da rua (rsrs). Estava nos desfiles do Suvaco, Simpatia e Carmelitas e, mais tarde, no Bola Preta. Além do palco da Lapa, que era um prenúncio do que se tornaria o carnaval de rua carioca, uma efeméride muito além do samba. Com toda a deferência e respeito, na maioria dos casos, mistura-se o samba a tudo o que é agradável aos ouvidos. Na Liga do Zé Pereira, tentamos traduzir um pouco disso com blocos de marchinhas, rock, samba-enredo, samba de raiz, neofanfarras, blocos de bairro, tem o Vagalume com uma pegada ambiental. Tudo isso em um universo de apenas nove blocos. Vamos pra rua!