Glória Maria sempre foi – e será – personagem desta coluna. Neste 02 de fevereiro triste, de luto nacional (e mundial), começamos as homenagens com a última entrevista à coluna, em novembro de 2017, no mês da Consciência Negra.
Glória foi a primeira repórter negra de projeção na TV – atemporal, segura, presente e eterna jornalista falou sobre racismo: “Já vivenciei todas as caras do racismo na minha vida”, disse. Glória já teve passagens cruéis, como em 1976, quando processou um hotel (fazendo uso da Lei Afonso Arinos) depois de ter sido impedida de entrar pela porta da frente e orientada a usar o elevador dos fundos.
Ou outras surpreendentes: “Quando estive no interior da Sérvia e fui conversar com uma velhinha, descobri que ela nunca tinha visto um preto na vida; ela não sabia que existia gente diferente dela. Sua alegria quando me descobriu foi inacreditável, percebendo a diferença e que o mundo poderia ser muito mais bonito. Ela não queria mais me deixar ir embora”, diz. Na conversa, Glória também comentou os casos da época, como o do colega William Waack e da ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois.
Depois da repercussão desta entrevista, Glória também conversou com a coluna sobre a Lei Áurea, no dia 15 de maio de 2018. Relembre aqui!
Também ainda em 2014, Glória falou sobre os protestos pacíficos em Nova York, sobre a questão da impunidade dos policiais brancos em relação à violência contra vítimas negras, e traçar um parelelo com o Brasil. Relembre aqui!
A escravidão ainda existe?
A escravidão continua existindo, só mudou de cara. Não somos mais presos por correntes ou grilhões, sim, mas a nossa escravidão é tão cruel que somos vistos como inferiores, subalternos, sub-humanos e, pior ainda, sem poder de decisão. O poder branco é branco, uma voz negra não tem importância. Continuamos vivendo da maneira que a sociedade branca permite. Pra escapar, a gente precisa entrar numa guerra por liberdade; pra existir, precisamos mostrar que fazemos parte deste mundo, o que é um absurdo. Dos tempos de escravidão oficial até hoje, praticamente nada mudou. Precisamos de cotas pra provar que somos inteligentes, que temos capacidade de estudar e aprender. Casamentos inter-raciais são cada vez mais raros.
Você acha que a educação pode melhorar o racismo?
Precisamos ter a consciência de que somos todos iguais. Mesmo as pessoas brancas, entre si, se sentem umas melhores que as outras; com relação aos negros, esse sentimento é elevado à potencialidade. Se assim fosse, não existiria racista educado, ou seja, independe da educação: conheço pessoas cultas, educadas, mas racistas. O que precisa haver é a consciência da igualdade, de que o outro é igual a você, para que não exista o sentimento de racismo, que continua explícito, claro e transparente – só não existe para quem não é vítima desse sentimento.
Você viaja o mundo inteiro. O que apontaria de diferenças entre o comportamento dos brasileiros e o de outros povos?
O racismo no Brasil é muito mais grave, muito mais cruel, porque parte da desinformação e do egoísmo. Em outros países, existe, mas, quando acontece, é direto – temos como nos defender; você reconhece o inimigo e fica mais fácil lidar com ele. No nosso país, as pessoas, além de racistas, são covardes. A grande maioria prefere dizer que o racismo não existe, e, muitas vezes, fala que ele tem um motorista preto, uma babá preta, uma empregada preta e que essas pessoas são aceitas em suas casas – sei, como inferiores!
O que esse feriado de Dia da Consciência negra pode trazer?
Desde o momento em que mexe na ferida, abre um espaço maior para a discussão — esse é um caminho. O grande problema de nós, negros, é a invisibilidade. Você não precisa se preocupar com aquilo que não vê ou acredita que não exista. Um dia como este, mesmo para as pessoas que preferem jogar o assunto pra baixo do tapete, ainda que por alguns segundos, ela tem de pensar, e mesmo que, a longuíssimo prazo, pode modificar o problema racial.
Você já percebeu qualquer gesto de discriminação com as suas filhas?
Claro que já. Ensino a elas que existe gente de todas as cores e que todo mundo é igual, mas, ao mesmo tempo, tento prepará-las para a dor. Elas estudam em escolas de elite; na sala, são praticamente as únicas negras. A Laura e a Maria (de 8 e 9 anos) já vieram questionar por que elas não têm o cabelo loiro, liso e por que a pele é diferente. Eu explico que ninguém é igual. A única esperança que tenho, e que me deixa um pouco otimista, é que, pelo menos, minhas filhas convivem com crianças de alma aberta e pura. Acredito mesmo que elas possam mudar a situação.
Há pouco tempo, você comentou que, no Brasil, não se fabricam bonecas negras. Isso mudou?
Existem pouquíssimas. Aqui não temos referências negras positivas pra criar e orientar nossos filhos. Se você vai a uma peça, os heróis são brancos, as princesas são brancas, os vitoriosos são brancos. Qual o papel que sobra para o negro, na ciência, na literatura, no teatro? Os ETs? Quando a gente consegue o reconhecimento, na visão do mérito, não é um mérito, é uma concessão.
Alguma lembrança vivida por você retrata isso?
Quando comecei a apresentar o Fantástico, em 1998, muita gente fez movimento, dizendo que foi por pressão do movimento negro, e não pelo meu talento e minha capacidade. Se um branco faz, é porque conquistou; ninguém diz que foi pressão da sociedade branca. A primeira vez que o Eraldo Pereira assumiu a bancada do Jornal Nacional, virou algo extraordinário: “como um negro apresentando o JN?” Significa pro mundo que não era natural, tanto que tinha de se justificar, como se fosse o primeiro homem a chegar à lua. Comigo, às vezes, se passa também de maneira diferente – vão pensar duas vezes, são racistas, ou seja, burras, mas não são idiotas. É como se eu fosse um troféu: ter a Glória Maria, uma negra famosa, conhecida, como se dissesse “a gente demonstra que não é racista, a Glória tá aqui”; mas vai a Glória Maria pisar na bola, e diriam: “Tá vendo? isso é coisa de crioulo”. Esta semana, saiu uma estatística apontando que 71% das vítimas de homicídios são negras. Levei um susto e pensei: até parece o movimento de extermínio de uma raça.
Normalmente, você não tem namorados negros. Por quê?
Os homens negros preferem as brancas. O próprio negro se discrimina; para ele acreditar que venceu e tem status, precisa usar os valores brancos, como as suas mulheres, por exemplo. Quanto mais escura a sua pele, mais excluído você é.
O que significa a cor da pele?
Pra mim, a cor da pele nada significa porque eu costumo ver a alma – o que me interessa é o caráter e a capacidade de amar. No mundo em que vivemos, de competição e exclusão, esse tipo de sentimento não significa nada.
E sobre os casos recentes envolvendo o jornalista William Wack e a ministra Luislinda?
A frase não é do William — é do universo. Ter dito uma frase racista não significa que ele especificamente seja racista. Convivi a vida inteira com o William e nunca percebi nele uma demonstração de racismo. Waack simplesmente teve uma reação inconsciente, que expressa o racismo. Chegou a esse ponto: uma reação inconsciente. Esse tipo de coisa é uma piada como fazem com português. Quanto à ministra Luislinda, ela fez o que todos eles fazem: acumular cargos. Ela não pode? Seria a única? É negra e teve a “ousadia” de conseguir ser ministra. Por que nunca se falou isso dos outros? É o que eu falei no início: “é coisa de preto”. O erro é sempre negro; o acerto é sempre branco.
(Foto da capa: Luiz Roberto Kauffmann, foto do post, divulgação)