Chega o fim do ano: quem está livre desses balanços internos, reflexões de si pra si? A data parece trazer uma certa pressão. Conversamos com a psicanalista Cynthia Bezerra sobre esse tema, que se repete desde sempre. Ela nos faz tentar entender o que se passa, como fez em seu livro “Consultório de Psicologia” (2018), com perguntas do tipo “qual é o lugar de cada um de nós no mundo? Que responsabilidades temos diante do que nos cerca?”, no qual fala também de solidão, ciúme, depressão, perda etc.
No ano passado, a Associação Psiquiátrica Americana falou com mais de 2 mil pessoas, e 41% disseram ter um aumento de preocupação durante a temporada; já este ano, 31% disseram que esperavam se sentir ainda mais estressados do que em 2021, por razões variadas: obrigações sociais, problemas com presentes, tensões familiares, desafios de viagem, preocupações financeiras.
Cynthia vê esses problemas nos seus consultórios, em Ipanema e Barra, com crescimento de 30% dos pacientes desde junho.
Aonde nos levam esses balanços internos, que quase todo mundo faz no fim do ano?
Antes de mais nada, eles nos levam a nós mesmos. O fato é que alguns o fazem e outros, não. Refletir, em uma era de tanto imediatismo, muitas vezes pode soar como démodé ou simplesmente contraproducente. Existe uma ideologia vigente que propõe “um viver aqui e agora”. Não resta dúvida de que depressão e ansiedade são transtornos regidos, além de outros fatores, por uma insistência quase patológica de se viver no passado ou no futuro. Mas fazer estacionar o tempo, para que se possa olhar para mais um ano que termina, ajuda-nos a observar essa trajetória de ganhos e perdas, de aprendizados e de experiências.
Existe um mal-entendido pressupondo que estar “sempre em movimento” seja o único caminho na direção do sucesso e da felicidade. Penso que, exatamente na contramão disso, possamos encontrar uma existência que esteja a nosso serviço. Propósitos são muito maiores do que projetos; estes nos dão a subsistência; propósitos nos dão a razão. O temor que muitos têm desse balanço vem de um outro engano: o de que fechar esse caixa pressupõe uma única equação, resultados exatos, desfechos perfeitos.
Esse passar a vida a limpo traz que tipo de ação no dia seguinte?
Eu diria que nada se dá no dia seguinte, e de que tudo depende de como cada um de nós encara essa aventura, que é a vida. O próprio Lacan diria que os efeitos da análise terapêutica se dão no “a posteriori”. Por isso, acreditamos que existe uma transformação que vai acontecendo pouco a pouco, e à medida que, sem assombros, conseguimos ressignificar, nesse caso, mais um ano que está por vir.
Agir e reagir são ações supernecessárias quando se trata de um mecanismo natural de luta e fuga. Esse mecanismo nos auxilia a identificar situações de risco, experiências que nos fragilizaram para aprendermos a nos defender. No entanto, para a transformação acontecer, é preciso que reconheçamos nossos limites pessoais e façamos as pazes com isso – algo do tipo “eu fiz aquilo que era possível, eu pude até aqui”.
A pandemia trouxe alguma grande mudança nesse comportamento?
A pandemia nos deixou alguns legados. Acho que o maior aprendizado foi nos havermos com a nossa pequenez frente à potência dessa pandemia e com a nossa grandeza diante de tantas adversidades. Fomos impelidos a nos reinventar; nenhum de nós saiu ileso disso. Compreender, quem sabe, e definitivamente que não controlamos tudo pode ser um ótimo começo. Espero que tenhamos entendido que precisamos uns dos outros. Talvez devamos aprender a viver melhor e com menos: a impermanência das coisas nos convoca ao lugar da simplicidade.
Por que essas datas são sempre vinculadas a tanta emoção?
O que emociona é exatamente a sensação do quanto 365 dias é muito e, ao mesmo tempo, pouco para nos levar a um pódio, provavelmente imaginário, que estabelecemos para nós. Existe também uma esperança, sempre bem-vinda, de dias melhores, de amores maiores e de quem sabe, sermos, um dia, compreendidos. Mas parte de tudo isso começa de dentro pra fora; por isso, a ideia de passar a limpo pode ser nossa parceira antes de começar de novo.
Você considera pensar nas dores e adversidades e, talvez, o que elas tenham deixado?
Diminuir o ritmo, nesta época do ano, nos dá uma noção da dimensão do quanto nossas lutas diárias são capazes de nos fazer estremecer, mas também de nutrir. O quanto crescemos nas adversidades vira um mantra que insiste em nos fazer lembrar: sempre se pode um pouco mais. Racionalizamos aquilo que ainda não conseguimos assimilar, pelo menos enquanto ainda não conseguimos lidar com isso, sublimamos dores e as transformamos em produções artísticas, religiosas, em missões de vida a realizar. Que bom!
De onde vem esse apreço por virar o ano sempre no coletivo, como a maioria prefere?
Acho que queremos nos sentir abraçados até mesmo quando esse coletivo é um par de dois. É legítimo, genuíno, a esperança comparece mais uma vez. Nos alimentamos também de alegrias e comemorações. E, mais uma vez, a constatação de que precisamos uns dos outros.
A sensação de “ano novo, vida nova” faz algum sentido?
Novo no sentido de diferente, sim. Novo no sentido de uma vida que esteja minimamente a nosso serviço, sim. Novo no sentido de não tantos projetos, mas mais propósitos, sim. De resto, tudo sofre as leis naturais de um reaproveitamento útil; aliás, toda a humanidade começa a caminhar nessa direção. Então, por que quereríamos que, individualmente, fosse diferente? Cuidemos para que metas e estratégias, de preferência estejam a serviço de alguma saúde mental ou, pelo menos, não contra. Tudo isso é um cuidado consigo. De resto, é preciso entender que a vida é a arte do possível.