A pedido de pacientes, amigos, e parentes advogados escrevo esse simples texto.
O narcisismo é uma característica do ser humano nomeada a partir do mito grego. O mito representa um forte símbolo da vaidade, sendo muito citado nas áreas da psicologia, filosofia, letras, música, artes plásticas e literatura. Na psicanálise é um dos trabalhos seminais de Freud, e ocupa muitos escritos em inúmeros autores.
De acordo com o relato mítico, além de uma beleza estonteante, a qual despertava a atenção de muitas pessoas (homens e mulheres), Narciso era arrogante. Ao invés de se apaixonar por outras pessoas que o admiravam, ele as desprezava, até que ficou apaixonado por sua própria imagem refletida num lago.
Mas o amor de Narciso não era correspondido pela sua alucinação. Sua teimosia, outra característica, o levou a recusar-se a abandonar o espelho, na esperança de que um dia pudesse concretizar o seu amor. Mas isso jamais aconteceu.
Profundamente deprimido, Narciso deixou de comer e beber e acabou definhando e morrendo.
Uma das possibilidades interpretativas é como o apego vaidoso, arrogante, e renitente a uma função (posição, ou cargo), pode destruí-la. O que deveria ser motivo de admiração e respeito por sua utilidade pública, se transforma em um traço alucinatório tão invasivo que inverte a lógica da saúde mental fazendo com que o tóxico pareça ser saudável, e o saudável o tóxico.
No seu trajeto destrutivo, que muitas vezes não encontra um freio, as atitudes narcísicas arrastam tudo para a decepção e para o desespero.
Um juiz quando veste sua toga deveria simbolizar não apenas um indivíduo culto em leis, mas também o poder de aplicá-las corretamente. Uma sociedade democrática espera que a lei signifique fazer justiça, o que é muito diferente de punir, perseguir, e se vingar de pessoas. Fazer justiça também envolve compaixão, o que significa que antes de qualquer coisa um juiz deve possuir um bom caráter. Para tal existem os concursos que além do conhecimento jurídico, podem auferir o estado mental e a experiência de vida do sujeito, apurando a compatibilidade com a função. O fato de desejar ser juiz não significa que alguém possa ser.
Mas como toda profissão, existem fatores de insalubridade que podem despertar aspectos narcísicos profundos, e que os melhores concursos e avaliações não captam. Imagine então quando não se tem concurso, mas uma simples sabatina feita por pessoas que muitas vezes não sabem mais do que o próprio nome.
Se um indivíduo é invadido por narcisismo, ao vestir uma toga, ele vai achar que é a própria Lei, e não a função de exercê-la corretamente, e assim vai interagir de forma profundamente tóxica com a sociedade causando um efeito patológico com sua profissão. Isso é o que em psicanálise podemos chamar de megalomania.
Conta o final do mito que no lugar da morte de Narciso, nasceu uma flor amarela e branca, que hoje conhecemos pelo nome de narciso. Uma possível interpretação é a necessidade de neutralizar essa faceta muda e obscura dentro de nós, pois assim fazendo, aquilo que de fato é belo e admirável no ser humano pode renascer para todos.
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.