Os tempos andam bicudos: muito ódio, ofensas, desavenças, bebedeiras, angústia, ansiedade. Gente sem qualquer humor. Poder-se-ia até dizer: que palha assada é essa? Pois é. Mas talento, graça, trapalhada do bem, um vilão canastrão possuem seu lugar. Uma arena de circo daquela onde se dá risada e se batem palminhas. Isso tudo está em “Adeus Ternura”, com direção de Rodrigo Portella e dramaturgia de Rafael Souza-Ribeiro, do premiado grupo Bando de Palhaços em sua primeira incursão no teatro adulto.
Um bar que vai fechar naquela noite, um comprador canastrão. A mais pura brasilidade está inteira em um texto, elaborado com as três regras do teatro clássico: unidade de lugar (ação toda no mesmo cenário); unidade de tempo (ação é a duração da peça) e verossimilhança (se acontecesse assim, seria assim exatamente). Rafael Souza-Ribeiro acerta em cheio quando se vale do recurso cinematográfico do plano sequência: a cena é sem cortes, os personagens são vistos de uma única perspectiva e ao longo de toda uma ação. Os diálogos, os encontros são em linguagem rápida, com toques de quiproquó e pinceladas do exagero de atuação dos palhaços de circo.
E para garantir esse clima de bares, sempre decadentes, com a “família” de frequentadores, o proprietário funcionando quase como um manipulador de bonecos, a trilha sonora fio condutor, pesquisa pelo grupo a partir do excelente “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”, de Paulo Cesar de Araújo. Ana Carolina Sauwen, Camila Nhary, Filipe Codeço, Matheus Lima e Pablo Aguilar interpretam, com muito talento, personagens que conseguem uma tarefa difícil — ao mesmo tempo, estereótipos e arquétipos —, que se confrontam com o fracasso, mas seguem em frente, pela força que exala do conjunto.
A direção do premiadérrimo Rodrigo Portella é um acerto em todas as frentes. Transforma a arena do Sesc em um picadeiro na qual os atores se movimentam com a mesma agilidade que se vê no circo. O over se torna na medida. Os figurinos vestem mais do que as pessoas; encarnam o que pensam, o que sentem, suas perdas. Há, ao fundo, nos sussurrando, a atuação dos palhaços que vimos pela vida afora. O que transborda como os sentimentos das músicas é a capacidade criativa de Rodrigo, que cria, em cada espetáculo que dirige, uma joia lapidada de prazer para a plateia.
A palhaçaria são os gestos, ditos ou maneiras de palhaço que se constitui no modo de agir espalhafatoso ou ridículo, exagerado. A roupa larga, o sapato bicudo, o nariz vermelho, a boca superdimensionada traduzem um grotesco que logo se transforma, pela alegria, em um momento especial. Há surpresas, erros que viram acerto. Acerto que vira erro. É desse talento, dessa verdade dos limites humanos, que o Bando, Rodrigo e Raphael nos fazem pensar que, de camada em camada, chega-se ao essencial: a alegria da ternura é o que nos salva.
Serviço:
Teatro de Arena do Sesc
Quinta a domingo, às 20 h