No ano da graça dos Nossos Senhores Mark Zuckerberg e Elon Musk de 2022, o brasileiro está interessado em discutir inclusão digital, metaverso, carros elétricos, tokens não fungíveis, ataques cibernéticos, viagens espaciais e o poder da internet, certo?
Erradíssimo. Estamos discutindo satanismo. Excessos etílicos. Canibalismo. Maçonaria.
A Nasa acerta um asteroide a 11 milhões de quilômetros de distância da Terra – e nós aqui xingando nordestino de analfabeto. Nós, que estamos na 60ª posição no Pisa, um ranking mundial de qualidade de educação. Nós, que somos, em grande maioria, analfabetos funcionais, do tipo que não entende o que lê e não sabe se expressar por escrito. E, claro, não capta ironia. Mas analfabeto é quem não vota em quem eu quero.
Metade do planeta tentando sobreviver, a outra metade preocupada com uma possível escalada nuclear na guerra da Ucrânia – e nós aqui medindo o coeficiente de fascismo e de comunismo de alguém pelo apoio que dá ou deixa de dar ao nosso candidato.
A crer nas redes sociais, estamos entre nos tornar uma Venezuela ou uma Venezuela. Elas são idênticas — com aparelhamento do Estado, controle dos meios de comunicação, corrupção, culto à personalidade, violência política. Exceto que uma é do Bem e a outra, do Mal. Ou, como ensinou Millôr Fernandes, numa eu mando em você (a isso se chama “democracia”), na outra você manda em mim (também conhecida como “ditadura”).
Mas, mesmo num Estado laico, faz sentido trazer o satanismo para o centro do debate político. Afinal, o Brasil tem larga tradição satânica — principalmente essa que envolve a união em torno de obras filantrópicas, assinar com três pontinhos e chamar Deus de “Grande Arquiteto do Universo”. Nisso estiveram envolvidos D. Pedro I, os marechais Deodoro e Floriano, Prudente de Moraes, Campos Sales, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás, Delfim Moreira, Washington Luís, Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, Ruy Barbosa, Nilo Peçanha, Café Filho, Nereu Ramos, Jânio Quadros. O que explica nunca ter havido liberdade religiosa no país, não termos igreja (seja católica, seja evangélica), nem espiritismo ou cultos de matriz africana. Muito menos ateus, claro. Devemos aos maçons essa inabalável simpatia pelo Demo.
Precisamos também falar do canibalismo, prática tão em voga, e que tanto afeta nossa vida cotidiana. E que veio bem antes da degustação do bispo Sardinha pelos caetés, ali por volta de 1556. O hábito ficou tão arraigado entre nós que Oswald de Andrade achou por bem fazer um Manifesto Antropofágico em 1928 — talvez com novas receitas, preparos, técnicas de corte e pontos de cocção.
Caetano Veloso retomou o tema em 1987, com “Vamo’ comer, vamo’ comer João / Vamo’ comer, vamo’ comer Maria / Se tiver, se não tiver então / Ô ô ô ô ô / Vamo’ comer, vamo’ comer canção / Vamo’ comer, vamo’ comer poesia”. Já o tinha feito antes, em 1971, na voz de Gal Costa: “Você traz a Coca-Cola eu tomo / Você bota a mesa, eu como, eu como / Eu como, eu como, eu como / Você”. Como diria Silvio Santos – e o presidente que usava verba de gabinete para comer gente – canibalismo é coisa nossa.
Nada mais justo que, num país sem inflação, sem fome, sem orçamento secreto e sem Centrão; com baixíssimos índices de violência e de degradação ambiental; com pleno emprego, superávit habitacional, saneamento para todos, previdência tranquila e saúde pública de qualidade; direitos iguais para homens e mulheres, gays e héteros; a gente se dedique a escolher presidente tendo por critério o consumo de álcool ou de carne humana; se ele paga dízimo ou promessa; se fala português errado ou muito errado. Não se vai estourar ou arrebentar o teto de gastos; se vai unir ou desagregar ainda mais; investir na educação ou apostar na ignorância e na desinformação; criar condições para o futuro ou engatar marcha a ré rumo ao passado.
A Nasa mira os asteroides, o investidor virtual minera criptomoedas, os europeus estocam iodo para o caso de um Armagedon – e nós aqui, caçando bruxas, erguendo espantalhos, ressuscitando bichos papões, espalhando notícias falsas e inventando novas lendas urbanas.
Se, a despeito da Nasa, um meteoro atingir a Terra; se, apesar da ONU, eclodir uma guerra nuclear; se o dólar, o euro e o real desaparecerem, nem vamos notar a diferença. Já estamos social, política e mentalmente vivendo uma espécie de Idade da Pedra.
Pedra lascada — porque para chegar à polida ainda vai levar um tempo.