Num Brasil e em um mundo sofrendo com a polarização afetiva, aquela que combina a adesão forte a uma identidade política com a intensa aversão a qualquer um que esteja do lado oposto e é visto como inimigo — o que difere da polarização ideológica —, Maria Paula Fidalgo só quer paz.
A atriz e psicóloga fundou a Embaixada da Paz, ONG que atua em projetos sociais e ambientais, em 2015, em Brasília, onde nasceu e mora desde então, mantendo seu apartamento no Rio. Nos dias 15 e 16 de outubro, estrategicamente entre o 1º e o 2º turno das eleições, convida a todos para o “48 Horas pela Paz”, evento suprapartidário com músicos, empresários, atores e líderes religiosos e espirituais pela paz, no teatro L’Occitane, em Trancoso, na Bahia, além de participações digitais do mundo todo.
Estão confirmados nomes, como o guitarrista Stanley Jordan, Jacques e Paula Morelenbaum, Sandra de Sá, Luiz Caldas e Mariana Aydar, além de Cleo Pires e Tom Cavalcante. A abertura do evento será transmitida pelos canais do MIS de São Paulo. “Vivemos um momento sensível no Brasil e no mundo e precisamos nos envolver e termos ações pela paz, por um mundo mais solidário e em harmonia”, diz Maria Paula.
A convite da embaixadora, o jornalista Pedro Bial escreveu um texto sobre a paz — a ideia é que artistas em cartaz com espetáculos no Rio, São Paulo e outras capitais façam a leitura de trechos, no momento “Pérola da paz”, para divulgar e compartilhar o evento o máximo possível. “Funciona como um dominó para chamar a galera de diversas formas”, diz ela.
De musa das Organizações Tabajara — do programa “Casseta & Planeta, Urgente!”, a única mulher do elenco humorístico, de 1994 a 2010 – à embaixadora da paz foi um longo caminho, com dois filhos no meio (Maria Luiza, 18 anos, e Felipe, 14, do casamento com o músico João Suplicy), vários trabalhos na TV, no cinema e dois livros, um como autora (“Liberdade Crônica”, 2011) e outro como colaboradora (“O Poder das Forças de Caráter”, sobre Psicologia Positiva, em 2021), além de palestrante falando sobre paz até fora do País, e acabou de estrear mais uma função, como corroteirista do filme “Ecoloucos — Uma comédia insustentável”, com Cibele Amaral, em que também atua.
Embora esteja “casada” com o suprapartidarismo, chegou a flertar com uma candidatura a deputada federal quando se filiou ao União Brasil. O encontro não deu “match”, e ela se desfiliou rapidamente.
A data do evento foi proposital em época eleitoral?
A data foi estratégica até porque a gente trabalha com uma questão simbólica, com a mentalidade, e a intenção é trazer uma vibração esperançosa e, ao mesmo tempo, realista. Estamos num momento superoportuno para falar sobre a paz, com o Brasil polarizado, o povo brigando com a família, o mundo em guerra – temos a Ucrânia sofrendo os ataques da Rússia, agora a China se insinuando para Taiwan, ou seja, é um momento extremamente delicado que exige total lucidez e discernimento. Não dá pra brigar num momento como este; precisamos trazer a consciência para as pessoas. Não tem essa de que “a guerra está acontecendo lá longe, e eu não tenho a ver com isso!” Todos estão sendo impactados, então vai ser um evento para trazer essa luz, essa temática, porque as pessoas estão muito agressivas e combativas.
E acredita que o evento vai ter alcance e permanecer suprapartidário?
O lado da violência está sendo muito divulgado, mas esse outro lado de mensagens de serenidade, de respeito, a gente não vê. Por isso, resolvemos focar em fazer 48 horas com muitas atividades no Brasil inteiro, não só no presencial. Vamos ter falas muito potentes e falar só em esperança, porque do jeito que a situação vai, estamos danados. Vários países vão participar de diversas formas, como transmitir os “peace talks” (debates da paz), porque o tema será paz, paz, paz… Não vamos fazer denúncia, não vamos reclamar, não vamos jogar culpa em ninguém, só vamos falar de solução. O nosso acordo, entre todos os palestrantes, todos os músicos é que é um evento suprapartidário, primeiro porque vamos estar entre o 1º e o 2º turno (dia 30 de outubro), então temos que ter firmeza. Queremos trazer uma abordagem que não seja ideológica, lembrar que, seja da direita ou da esquerda, o futuro é em comum.
Não seria uma visão muito utópica?
No começo, quando me falavam que era muito utópico, eu concordava, mas, se não plantasse a semente, quando é que algo pode mudar? Não é um pensamento mágico: “pum!”, tudo se transforma para o bem. É não só ter os pés no chão, mas também mostrar que é interessante a gente se lembrar, seja de direita ou esquerda, que o futuro de todos é o mesmo. Então, em vez de desrespeitar o outro porque ele pensa diferente, podemos encontrar pontos de divergência, mesmo na diferença e, principalmente na diferença, e usá-los como vantagens estratégicas, porque isso amplia o nosso olhar. A gente não precisa concordar com ele, mas precisa ouvir. Não é utópico porque estou vendo acontecer, tanto que estou recebendo convites para falar sobre paz no mundo inteiro. Faço isso há 10 anos.
A pandemia mudou algo nas pessoas?
Elas entenderam que a paz e o fazer o bem não são mais utopia; pelo contrário, são uma necessidade. Só ver a mobilização de ONGs e redes de apoio que se formaram, é uma coisa bonita de ver. E essa coisa de achar distante a abordagem pacifista é porque ainda não bateu na porta delas, porque, se bater, as pessoas se engajam imediatamente, porque paz é algo transversal a todos os temas. Temos que pensar no tipo de conteúdo e narrativa que estamos criando, porque quanto mais violência a gente oferecer para os espectadores – onde todo mundo trai todo mundo, todo mundo é corrupto, violento –, mais ela fica no nosso repertório. A gente deita, dorme e sonha com coisas desse tipo depois de assistir a isso o dia inteiro. Então precisamos também chamar a atenção para outros tipos de caminhos, da felicidade, da paz.
E como chamar atenção do jovem tecnológico hoje em dia, para um assunto, digamos, nem tão atrativo?
Os jovens não estão sabendo lidar com nenhum tipo de contradição. Eles já logo cancelam quem pensa diferente, passa para o próximo. A paciência das pessoas está muito curta porque estão inseridas numa transformação tecnológica brutal, muito rápida e que está chegando dominada por algoritmos que não treinam e nem ensinam sobre sensatez, mas estimula o radicalismo, a ter acesso a opiniões extremadas sobre o mesmo tema; então, as pessoas estão fechando os horizontes em vez de abrir. Precisamos usar a tecnologia para o bem. É claro que tudo que está nas mãos de gente ruim pode ser usado pro mal, mas, nas mãos de gente consciente, pode trazer muito avanço. Está na hora do “turning point” (virada). Se a gente consegue fazer com que as pessoas entendam a gravidade do momento e se engajem em movimentos pacifistas, consegue mudar muito, transformar a tônica, o ambiente em que estamos inseridos. Então, a mensagem do “48 horas” é de esperança, é de que dá pra fazer. Estamos em 2022, num mundo hiperconectado, e essa é a convocação: criar meios para unir as pessoas, como aplicativos que nem um Tinder, mas, em vez de match amoroso, fazer um match de voluntariado. Por exemplo, se eu gosto de criança e está tendo alguma ação perto da minha casa, o meu celular dá um “blip”, me avisa, vou lá e faço 3 horinhas de trabalho voluntário e pronto. Isso é que é esperançoso: por um lado é “putz, tá difícil!”, mas por outro, é “caramba, estamos cheios de ferramentas nas mãos, bora usar?”
Quando aconteceu essa virada?
Quando eu tive a Maria Luiza (filha com João Suplicy), que hoje está com 18 anos, o Ministério da Saúde me colocou em rede nacional, preconizando seis meses de aleitamento materno, mas o Ministério do Trabalho não garantia seis meses de licença-maternidade. Daí fizemos uma campanha para aumentar essa licença de quatro para seis meses, e conseguimos. O presidente era o Lula e, no dia em que ele assinou a lei, eu falei: “Peraí… Dá pra mudar leis? Então passei a usar melhor a minha imagem para fazer várias campanhas, como a de doação de leite materno, diminuímos a mortalidade infantil, a Fiocruz desenvolveu uma técnica de pasteurizar leite, e aí eu fiz campanha para a Fiocruz, que distribuía nas UTIs pré-natais. Por isso eu sou tão esperançosa: porque vejo que dá pra fazer.
Foi por isso que você pensou num cargo político?
Pensei e “despensei” rapidamente. Toda transformação, quando é feita de fora, demora mais; já estando dentro, quando você tem uma política pública sendo feita, a rapidez da transformação é maior. Eu tenho um grupo de Brasília que tem o Cristovam Buarque (ex-governador do DF), o Reguffe (o senador José Antônio Machado Reguffe), que são pessoas que eu conheço há muito tempo e nas quais confio. O Reguffe estava prestes a ter uma condição real de ser governador de Brasília e me chamou para entrar junto; apenas por isso entrei naquele partido (sem citar o nome do União Brasil). Na hora em que ele viu a sua candidatura ter sido inviabilizada, saiu, e eu saí junto, imediatamente (o União Brasil se aliou ao Republicanos e lançou a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves como candidata ao Senado, e também deram apoio informal, sem coligação, ao governador Ibaneis Rocha, o candidato que seria o principal adversário de Reguffe). Entendi que nem eu estava pronta, nem o ambiente estava pronto pra mim. Eu cheguei ali com um discurso extremamente relevante, e as pessoas estavam preocupadas com outras coisas.
Não é difícil ser assim num meio com tantos egos?
Ninguém sustenta as consequências de um ego por muito tempo. Quando você está agindo pensando no próprio umbigo, pode se preparar porque vai dar ruim pra você e pra geral, mas quando você age de verdade, com foco no coletivo, também pode se preparar porque vai dar bom, mesmo que no início pareça que não. É uma vitória ver que eu tenho o acordo do coletivo. Nada vai me convencer a entrar, nem prometendo mundos, porque só quero se for por um projeto em que eu acredito e com parceiros em quem eu acredito.
De musa das Organizações Tabajara para embaixadora da paz…
Não é bom demais? Mas é uma trajetória coerente porque sempre fui uma libertária, sempre vim com essa pegada de mulheres à frente, e também foi um feminismo muito suave. Nunca fui uma pessoa de ficar esculhambando o outro, acusando; sempre tive uma pegada amorosa, fiz terapia desde os 16 anos. Faço meditação, que é uma coisa que equilibra muito – quando a gente entra num estado interno de quietude, percebe que ninguém é superior a ninguém, mas já mandei mal um monte de vezes. Entrei em momentos de achar que sou incrível. Aos 51 anos, eu estou mais madura, o tempo vai agindo — tem um lado que é foda, porque ele age contra, com dificuldade em manter a forma, esse lado de ladeira abaixo que não tem jeito. Do outro, é ter muitos ganhos; antes eu ficava abalada por qualquer coisinha, e hoje está tudo tranquilo.
O humor é essencial até para falar sobre coisas sérias?
Se o “Casseta” fosse hoje, ele nem existiria com o politicamente correto e seríamos cancelados na mesma hora. Mas é legal porque as coisas vão mudando, a gente vai se adaptando e abrindo a cabeça. O humor mudou de lugar e continua sendo essencial. A gente tem que rir, a situação está complicada e o trem tá feio. Sem arte, a gente não aguenta. O “Casseta” era uma puta crítica social, falava de tudo. O humor é fundamental e um grande aliado porque ele vai para uma via que não é da agressão e, fazendo o outro rir de si mesmo, ele se percebe e muda, faz melhores escolhas. Aliás, tem os atemporais, como o Jô Soares, que vai ser homenageado no 48h – são pessoas fundamentais, sem as quais a vida seria muito mais chata e muito mais triste.
Por Dani Barbi