A ideia de fazer um blog durante o transplante de medula era, a princípio, apenas prática. Como eu não sabia como o corpo ia reagir ao bombardeio químico, pensei em me adiantar e fornecer notícias a todos, evitando telefonemas e recados individuais. Afinal, eu estaria isolada do mundo, com a imunidade zerada, sem poder interagir. Era janeiro de 2013.
Bobagem. Escrever foi um alento e um fortalecimento, especialmente pra mim. O blog Diário do Manto fazia referência ao subtipo do linfoma que eu combatia, um tipinho chato: ao mesmo tempo agressivo e resistente aos tratamentos. Em cada post eu descrevia etapas do tratamento, revelava questões e dificuldades, pesquisava a terminologia e os procedimentos, falava de filmes, discos, livros, seriados, apresentava lembranças, dividia histórias. A escrita em si era um exercício de esperança, um olhar para o futuro, uma mobilização.
Quase dez anos depois, já posso avaliar quanto aquele momento me transformou. Uma doença grave nos põe em contato íntimo com a fragilidade da vida. E com a preciosidade de cada dia bem vivido. Muitas vezes me perguntam isso: o que o câncer te ensinou? E eu respondo: que há muito mais do que parece em cada situação da vida.
É natural que cada um reaja de maneira diferente em momentos de crise. O paciente de câncer, em especial, viu-se por muito tempo envolvido num pacto de silêncio (há, até hoje, quem não pronuncie o nome da doença). Natural também que haja quem prefira não revelar suas agruras para muita gente, é questão de temperamento. Mas minha experiência com o blog naquele momento me confirmou: narrar sua própria história, ou criar narrativas e universos humanos, profundamente humanos, nos leva em direção a uma cura emocional. Sair do isolamento. Dividir. Transformar.
Naquele momento, com a vida em suspenso — família, profissão, vida social — esse exercício da narrativa me conectou comigo mesma, me deu chão, e com o mundo. Eram cordas onde eu me segurava para atravessar abismos de incertezas; era como colocar, simbolicamente, a doença do lado de fora, olhar para aquele processo sem me perder na compreensível ansiedade que provocava. Cada post tinha tema e lógica. Era uma âncora da continuidade. E a vida é isso, continuidade.
Já durante o transplante, comecei a receber o retorno de muita gente, inclusive quem achava o blog na internet. Sendo o linfoma do manto uma doença complexa e rara, essas pessoas me contavam como a minha narrativa consolava e ajudava. Chorei muitas vezes de emoção ao saber que alguém diagnosticado com o mesmo linfoma conseguiu dormir pela primeira vez ao ler meu relato; que um filho assustado com a doença do pai recobrou as esperanças; que estava dividindo medos e diminuindo a tensão. De outros pacientes e famílias.
Por isso, acredito cada vez mais na escrita e na palavra quase como uma mágica. Para dividir as dores e multiplicar o afeto. Para trocar informações objetivas e recuperar esperanças. Posso dizer que, entre tantas mudanças que o câncer provocou em mim, uma das mais importantes foi a de continuar escrevendo e estimulando que todos exercitem a palavra como terapia. Faça um diário, escreva um poema, grave suas impressões, mesmo que seja só para si. Leia seu escritor favorito e “converse” com ele num texto. Escreva uma carta para o futuro. Descreva sua infância. Qualquer maneira de narrar vale a pena. Cura, conforta e alegra.
Luciana Medeiros, carioca, jornalista, trabalhou em O Globo, nas rádios JB e MEC e vem escrevendo sobre cultura em vários veículos como freelancer. Biografou a pianista Guiomar Novaes e o violoncelista Antonio Meneses (com João Luiz Sampaio) e os empresários Maria Luisa Rodenbeck e Arthur Sendas. Luciana lança “Diário de uma angústia” (Máquina de Livros) em parceria com o jornalista Mauro Ventura e o médico e psiquiatra Fernando Boigues, na próxima terça (18/10) na Travessa do Leblon.