Bruce Gomlevsky ousa em uma versão de tartufo, na qual os diálogos são substituídos pela mímica. Contar uma história, ainda que possivelmente conhecida, apenas com gestos, é um ato forte, de coragem, pois recupera, ao mesmo tempo, importantes tradições do teatro mundial — a mímica era presente nos teatros de Dionísio, na commedie dell’arte e no kabuki japonês. A caracterização exagerada na maquiagem e nos figurinos estilizados denuncia uma França rural de nosso imaginário, as idades, os sexos, a situação social. Não há nenhuma necessidade de palavra; a música contemporânea do esloveno Borut Krzisnik realiza a perfeita integração entre palavra e gesto, o ritmo de representação e o impacto das viradas do enredo.
A criatividade transbordante de “Um tartufo” é apoiada não só no elenco, que é capaz, de forma afinada, de mostrar a comédia satírica (o texto), mas também nas situações dramáticas dos personagens pelas manipulações do tartufo, brilhantemente interpretado por Yasmin Gomlevsky. O nobre senhor Orgonte franqueia sua vida e sua fortuna a um falso religioso tartufo que lhe toma a filha, Mariana, e mulher, Elmira. A presença dos tipos populares, como Dorina (Thiago Guerrante) e Cleanto (Ricardo Lopes), vai além de se ter tipos cômicos. Thiago realiza uma Dorina de passo miúdo, uma criada que é o olhar de quem não se engana. E o Cleanto de Ricardo Lopes, que está caracterizado como um preto velho manco, tem uma das melhores intepretações corporais já vistas.
A direção de Bruce Gomlevsky trabalha com todas as dimensões que o texto de Molière anuncia: a prepotência da nova classe dominante, a burguesia que se acha proprietária dos bens, assim como da vida de todos; a pulsão sexual desenfreada, sem limites, de Elmira, em contraste com o amor romântico de Mariana e Valério. O filho mimado Damis é totalmente inútil e simplório. A religião engana, os falsos messias prometem a vida eterna, envolvem as pessoas para lhes tomar os bens da vida presente. A manipulação é o tema principal que se traduz nos atores que nos parecem bonecos de fantoches. E só o corpo, os olhares, nos fazem apreciar a expressão nua e crua de teatro: a dimensão absoluta da pessoa, do seu corpo ali, à nossa frente, como o meio de nos emocionar e aplaudir de pé. Bravo Bruce!
Serviço:
Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto, Humaitá
Quintas, às 19 h