Vai demorar para eu me acostumar a chamar o príncipe Charles de rei Charles III. Nada contra o príncip…, quer dizer, o monarca. É, como diz o sábio André Gabeh, coisa minha.
Até hoje, decorridos 33 anos, não consigo me referir ao Jorge Ben como Benjor ou — pior ainda — Ben Jor.
Levei um bom tempo para passar a achar natural Rio de Janeiro RJ, em vez de Rio de Janeiro GB. Rio de Janeiro RJ me soava tão redundante e desnecessário quanto São Paulo SP. Isso porque não peguei Rio de Janeiro DF, ou era bem capaz de estar ainda hoje em fase de transição – e frequentando a praia na altura da Montenegro, não da Vinícius de Moraes.
Continuei indo às Casas Bahia quando já eram CB. Fui uma única vez ao Magazine Luíza e, ainda assim, tenho a certeza de jamais vir a colocar os pés num(a) Magalu. Ou num impronunciável RCHLO, que um dia atendeu simpaticamente por Lojas Riachuelo.
Sei que as coisas mudam. Que Prince (o cantor, não o Charles), por questões contratuais, precisasse adotar um símbolo para designá-lo, no lugar de um nome. E Bombaim, por questões decoloniais, passasse a ser Mumbai (que é o que, na verdade, sempre tinha sido). Da mesma forma, que a Rodésia tivesse que virar Zimbábue e o Congo Belga se transformar em Zaire (nem que fosse para virar Congo de novo). Que, das três Guianas da minha infância, uma tenha se convertido em Suriname.
No meu mapa mental, aquele que eu percorria com os dedos para ver aonde iam dar os rios, e qual deles passava pela capital, ainda existem as três Guianas, os dois Vietnãs, duas Alemanhas, uma Tchecoslováquia só, e também uma só Iugoslávia, que depois entrou em mitose (ou meiose, sei lá), e trouxe de volta à vida nomes de mapas mais antigos — Croácia, Sérvia, Bósnia, Montenegro. Mais ou menos o que aconteceria se do ventre da Alemanha ressurgissem a Prússia, a Baviera, a Saxônia, Schwarzburg- Sondershausen, Waldeck-Pyrmont e outros tantos reinos, principados, ducados, grão-
ducados e afins.
Me lembro, na fase de estudante de catecismo, da estranheza de haver um Saulo cujo nome mudou para Paulo, e Paulo foi, dali por diante, como se fosse a coisa mais natural acordar Jair e ir dormir Luiz Inácio. Ou, no caso da minha mãe, nascer Lopes de Faria e, depois da assinatura num documento, tornar-se Faria Affonso. Num domingo, rezar para que perdoassem as nossas dívidas; no seguinte, com as dívidas ainda pendentes, partir para a renegociação das ofensas.
O Brasil já foi Brazil — e era assim que meu avô escrevia. E se manteve fiel aos contos de réis, desenhando dos cruzeiros — novos e velhos — e dos cruzados (não chegou ao real). Como talvez genética seja mesmo destino, não fosse o corretor ortográfico eu ainda estaria agarrado aos meus tremas e hífens da infância, às idéias acentuadas (idéia acentuada me evoca, graficamente, alguém tendo um estalo, um lampejo, uma epifania).
Só que o mundo é uma metamorfose em rotação e translação. E, na contramão, há gente como eu, que, se tivesse uma vida um pouco mais longa, ainda não teria se habituado a viver na América do Sul, saudosa que estaria de Pangeia. Vai demorar para eu me acostumar a chamar o príncipe Charles de Charles III. Mas até o fim do reinado de William V ou, no máximo, o início do de George VII eu talvez já não ache mais tão estranho assim.