O terapeuta Renato Maiato Caminha, mestre em Psicologia Social e da Personalidade, fez brotar o desejo ardente, digamos assim, que tem a ver com pais e filhos, gravando vídeos sobre os mitos da relação que se apresenta com similaridades em qualquer idioma, perfil, país; afinal, todo mundo é filho ou mãe e pai de alguém. Tão amplo, que Renato também pretende lançar um livro com esse tema, até o início de 2023.
Caminha desmistifica mitos como essas fórmulas prontas que a gente ouve a vida inteira, por exemplo, o amor incondicional dos pais pelos filhos: “Acreditar nisso nos leva ao lugar do fracasso e culpa – o amor precisa impor condições e regras. O amor é construído, e não imposto por decreto”. E aquela do educar é uma delícia, um privilégio, esquece! “Educar é um ato amoroso, mas muito difícil e cansativo. Às vezes, não nos aguentamos mais ao ter que repetir a mesma coisa 20 vezes ao dia, como ‘o banheiro é pra ser usado por gente, não por um simpósio suíno’. Criar requer tolerância e frustração em doses diárias. Temos que buscar informações realísticas antes de ter filhos.”
Com dias corridos, os pais ficam sobrecarregados com a responsabilidade da educação dos filhos, acreditando na cultura de que nascemos prontos para criar e educar como um instinto natural. É certeira a frustração, a culpa. Depois de receber dúvidas e perguntas, Caminha começou a divulgar informações para ajudar os pais a se livrarem de culpas infundadas e terem acesso a conteúdo de base científica.
Renato, casado com a escritora e atriz Thalita Rebouças, também prepara com ela o livro “Falando sério sobre adolescência: a ciência encontra a arte”: “Thalita tem uma escrita muito intuitiva; nas suas obras, vemos muito do que estudamos na academia. São verbetes de A a Z que incluem automutilação, sexo, suicídio, bulliyng, consumo, eletrônicos, drogas, enfim acho que está bem bacana, e se dirige a um público desassistido, os pais de adolescentes. Para a infância, há muita coisa publicada, e os adolescentes parecem esquecidos”.
Renato é gaúcho, coordenador do InTCC (Instituto de Ensino, Pesquisa e Atendimento Individual e Familiar) em Porto Alegre e Rio, além de criador do protocolo “TRI clínico e preventivo”, conferencista internacional que trabalha com foco em Psicoterapias Cognitivas na Infância, Transtorno de Estresse Pós-traumático, Regulação Emocional, bem como Prevenção em Saúde Mental e Educação Socioemocional.
O que o levou a fazer os vídeos?
O principal motivo está relacionado às queixas parentais. Quando os pais procuram terapeutas para resolver questões de saúde mental dos seus filhos, ou ainda, quando estão perdidos na educação deles, sem saber como proceder, acabam sempre se penalizando e se culpando muito por algo que deveriam fazer e não fizeram, ou por coisas que acham que fizeram de modo muito equivocado. Isso acabou me motivando a divulgar informações que possam ajudar os pais a se livrarem de culpas infundadas e terem acesso a conteúdo de base científica.
Qual o retorno que você tem tido com os vídeos? Pode virar livro, série ou algo do tipo?
O livro está sendo produzido junto com os vídeos, e creio que, no final do ano ou início do ano que vem, estará na rua. Já os feedbacks têm sido muito favoráveis, pois falar abertamente dos mitos educacionais que a sociedade nos impõe e que são impossíveis de serem cumpridos liberta os pais. Pais sem culpa educam os filhos muito melhor.
Até onde sabemos, todo mundo tem PhD em como criar seus filhos… Quando alguém ou uma pessoa próxima que vê algo, digamos, errado, deve dar opinião? Ou seria eticamente proibido?
Educação não é receita de bolo; afinal, cada criança tem necessidades especiais. Quando atuamos como educadores parentais, não é para sermos os donos da verdade, mas sim alguém que passa informações científicas das etapas do desenvolvimento de crianças e adolescentes, do que é esperado em cada fase e como isso pode ser manejado – o conhecimento nos liberta. Aliado a isso, avaliamos a criança e o estilo dos pais. Acho deselegante meter o bedelho na educação alheia, sem que haja demanda para tal, a menos, claro, que crianças estejam sofrendo violência doméstica.
Em que momento os pais costumam procurar terapeutas?
Geralmente, quando as coisas desandam na educação escolar, problemas de aprendizagem, falta de limites, agressividade. A escola é, sem sombra de dúvida, a maior fonte de encaminhamento aos terapeutas. Os pais, sem indicação externa, até procuram ajuda, mas são minoria. A falta de limites é o motivo campeão de procura. A incapacidade de os pais exercerem a autoridade tem sido cada vez mais comum nos consultórios. A desinformação gera culpa, e a culpa afrouxa os limites. Privar um filho soa para os pais, muitas vezes, como se estivéssemos impetrando uma dor, uma tortura a eles. Assim a criança ou o adolescente não desenvolvem habilidades de tolerar frustração, o que os desconecta da capacidade de desenvolver empatia e de ter uma inserção social saudável.
Geralmente, a gente já nasce sabendo que ser mãe é conhecer um amor incondicional. E quando uma mãe fala que não, é esculachada pela sociedade. Como mudar isso? E existe o amor realmente incondicional?
Já publiquei um artigo na ‘Veja Saúde’, desconstruindo o tal mito do amor incondicional – o amor é uma relação construída no dia a dia. Claro que há mecanismos biológicos que nos predispõem a nos vincularmos de modo intenso com os nossos filhos. Há uma liberação intensa bilateral, ou seja, tanto nos cuidadores quanto no bebê, do apelidado ‘hormônio do amor’, que se chama oxitocina, responsável pela formação de vínculos afetivos e da redução das situações de estresse que vivenciamos com os bebês. O que eu sempre digo por aí, e muitas vezes sou criticado por desmontar esse mito lindo do amor incondicional, é o seguinte: você suporta tudo dos seus filhos? A resposta é sempre um não. Há coisas que não toleramos, logo, se o amor fosse incondicional aceitaria tudo. Esse mito nos predispõe ao tal ‘padecer no paraíso’ da parentalidade que nos coloca no lugar da insuficiência como pais e desemboca sempre no mesmo lugar, ou seja, na culpa.
Tem uma amiga, mãe de um casal (hoje, com 22 e 14), que dizia não ter nascido pra ser mãe, pois, de vez em quando, sumia do mapa, deixando os filhos com a família. Mas sentia culpa. Isso é normal?
Exemplo maravilhoso. Eu milito sistematicamente por uma Escola de Pais, tanto para os que já têm filhos quanto para os que desejam ter. Se as pessoas tivessem a oportunidade de ter informações das etapas do desenvolvimento dos filhos até a idade adulta e a independência, significativa parcela não os teria. Nosso cérebro biológico põe em campo algoritmos reprodutivos que ativam as nossas emoções e nos direcionam à reprodução, à informação. A Escola de Pais coloca em campo o cérebro racional, sem o manto da emoção. Isso muda tudo. Você saber que haverá cólicas, noites maldormidas, libido arrasada, viroses múltiplas, uma fase que começa perto dos 2 anos, que se chama adolescência da infância, no qual a emoção começa a se intensificar e as birras e os desaforos e agressividades se tornam rotineiros. A própria adolescência, que se torna um risco pela segurança pessoal, pela sexualidade, pelas drogas, pelas más companhias e, além disso, que você vai abrir mão de sua vida e muitos projetos pessoais e, ainda por cima, precisa de uma conta bancária imensa, pois você criou um pac man devorador de cifras… Você teria filhos? Uma mãe querer a sua individualidade e momentos sem os filhos é absolutamente normal, tudo depende de como a coisa é feita.
Com a vida corrida, ninguém tem mais tempo de cuidar 100% do tempo dos filhos, nem disposição emocional e física. Como fazer para aliviar essa culpa?
Assumindo suas limitações e lidando com elas de forma realística. Não somos pais perfeitos, falhamos, nossos filhos também não serão perfeitos, vão falhar também.
Ao assumir o “nunca pensei em ser mãe”: muita mulher teve filhos pela cobrança social e era praticamente um pecado não querer ser mãe. Todo mundo acha que é um pensamento egoísta, e não uma simples opção.
Relatórios internacionais apontam que mais ou menos 60% das crianças vindas ao mundo não têm acesso às necessidades básicas, e nem estamos falando de afeto. Estamos pondo filhos como coelhos no mundo, sem entregar o que é importante e necessário para eles. Sempre pergunto a quem não tem filhos: para que você quer ter filhos? Colocamos no mundo uma legião de marginais, excluídos, fechamos as portas de um mundo civilizado e saudável para eles. Isso é um absurdo. Criticar quem não quer ter filhos é, portanto, um ato insano. A sociedade paga essa conta com o aumento da violência e da exclusão social. Deveríamos pensar esse assunto como um ato de saúde social.
No seu mito 5, sobre “Educar não é uma delícia”…. Como deixar de idealizar a maternidade?
Voltamos à questão da informação, precisamos democratizar o que a ciência já sabe sobre esse assunto. A infância foi “revelada” ao mundo no Iluminismo, no século XVIII; de lá para cá, o conhecimento científico progrediu muito, só que esse conhecimento não está disponível para os pais. A Escola de Pais milita por uma democracia do saber.
Mito 7. Não devemos ter raiva dos nossos filhos…
Mais uma vez, criaram ideais e regras, o que seria impossível controlar os sentimentos nesse sentido. Raiva é uma emoção e, como tal, tem uma função adaptativa no sentido darwiniano. Precisamos sentir raiva de todo mundo: de pais, de filhos, cônjuges, amigos etc. A raiva impõe limites ao outro e preserva a nossa autoestima, logo é uma emoção saudável como todas as demais. A diferença é o que fazemos quando sentimos raiva – isso mudo tudo entre o que é uma atitude saudável ou um ato patológico.
Por fim, sobre os mitos, como podemos não ter tanta expectativa com a educação de um filho?
Sempre recomendo aos pais que ter filhos é um ato de devoção, portanto, não escrevam roteiros de vida para eles. A única coisa que desejo para os meus é que sejam do bem; o resto é com eles. Educar é um ato incontrolável desde a fecundação até a vida adulta de um filho. Você não controla nada e não sabe no que vai dar; não depende de você, simples assim. Costumo brincar que ter filhos é jogar dados com Deus.
Por Dani Barbi