Marcus Wagner se interessa tanto pelos prazeres quanto pelos problemas da cidade, com atenção igual a cada um deles. Tem atuação no nosso panorama cultural: criador e produtor do Baile do Sarongue (que completou 12 anos em 2020), é autor de dois álbuns de HQ sobre Bossa Nova e coautor de dois livros sobre a memória da cidade (“Rio Cultura da Noite, uma história da boêmia carioca” e “Letreiros”, com Mari Stockler), é sócio e operador do Alalaô Kiosk, o primeiro quiosque cultural da orla, no Arpoador, do qual cuida praticamente como da sua casa, sempre dizendo que ali está a síntese do melhor e do pior do Rio: “Um cartão-postal inflamado”.
Em março do ano passado, por exemplo, foi ele quem criou um abaixo-assinado para remover os 15 blocos de concreto que estavam escondendo a paisagem e atrapalhando a descida dos banhistas na rampa de acesso à areia. Em quatro dias, a prefeitura resolveu o problema. Marcus defende sempre um trabalho colaborativo da população com o poder público. Simples não é, sabemos, mas é uma vontade que a gente precisa tentar colocar em ação e, quem sabe, tirar a dignidade de alguns cartões-postais do fundo do poço.
Como andam os cartões-postais cariocas? Tendo como base o Arpoador, podemos formar uma opinião?
Um cartão-postal é sempre maior que a foto; tem raízes na sociedade que representa. Os locais que se qualificam merecem cuidados especiais e projetos à altura do interesse que despertam. No caso do Arpoador, que acompanho mais de perto, alguns grupos independentes atuam, cuidando do local, mas falta uma presença sensível e efetiva por parte do poder público. No meu entender, quando as ações espontâneas e oficiais se integram, os resultados se superam e irradiam, gerando um cartão-postal de respeito.
Você diz que o Arpoador sintetiza o que há de melhor e pior no Rio. O que é o melhor e o pior? Por quê?
É notório que vivemos numa cidade muito complexa, onde os extremos se tocam. O Rio se define pelos contrastes radicais que tomam conta da nossa paisagem natural, econômica e social. Pela geografia natural e humana, a pequena praia do Arpoador reúne características que também a definem como capital dos contrastes. Em pequena escala, expõe as mesmas peculiaridades. Cartão-postal controvertido, inflamado, que gera perplexidade, atração e repulsa, é o que melhor representa o Rio atualmente. Simultaneamente pode ser cenário de extremo deslumbramento e também de horror. No verão, o pôr do sol mais aplaudido do Planeta pode conviver com cenas de pânico, causadas pelos frequentes arrastões — que, aliás, completaram 30 anos no verão de 22. (O fenômeno estreou no programa Fantástico no verão de 92). Os problemas crônicos locais se confundem com o estado geral. No verão, a região torna-se base do teatro de operações policiais. A atuação da polícia é indispensável, mas se faz excessivamente presente: um “caminhão-jamanta” é estacionado sobre o calçadão, bloqueando a vista do cartão-postal, roubando os aplausos do pôr do sol e causando a impressão de uma intervenção militar exibicionista, mal planejada.
Como um local, o que poderia ser feito? Que armas podem ser usadas para problemas crônicos? O que a atual gestão pode fazer?
Não é simples; uma coisa certa é não continuar fazendo do mesmo. Problema crônico só se combate com planejamento e inovação. Mas não é preciso inventar a roda; exemplos externos, em outros locais e cidades, não faltam. Projetos envolvendo conservação e estímulo a atrações artísticas e culturais, de pequeno porte, revitalizam espaços públicos. A velha teoria da janela quebrada sempre vale. É preciso manter bancos e calçadas conservados, manter a presença dos frequentadores e atrair público novo com projetos especiais, que exponham a importância do Arpoador na cultura carioca, e a reativem. O papel do policiamento é muito importante, mas não deveria ser vedete, roubar a cena – o estado poderia entrar na área com outros agentes. Diversos grupos já atuam no local, cabe ao poder público identificá-los, investir e organizar, definir normas. Um plano diretor sensível às questões locais marcaria um novo momento.
E o parque?
O epicentro da região é o Parque Garota de Ipanema, há tempos, dominado por pessoas em situação de rua e pequenos delinquentes. No ano passado, chegou a ser palco de um trágico assassinato. Algo que deveria ser inaceitável onde quer que seja, no palco do cartão-postal, torna-se ainda mais dramático. A sensação de insegurança é agravada — as pessoas ficam a imaginar o que acontece no restante da cidade, onde não há tamanha visibilidade. Alguns moradores desenvolvem trabalhos relevantes na preservação do Parque, sonhando em mantê-lo apenas enquanto reserva ambiental. Projetos inovadores acabam por ser repelidos. Essa é uma questão sensível, que faz refletir: metrópoles como a nossa não permitem espaços vagos, pois, se houver, sempre alguma força se apropria, principalmente, as invisíveis. Alimentar a cidade com novos projetos envolvendo a sociedade é vital para mantermos o espaço público e refrescar as mentalidades.
Algumas ONGs e o Recicla Orla vêm fazendo o que ali na área?
Atualmente, os grupos que mais atuam no local buscam propagar educação ambiental, organizando coletas seletivas de lixo e instruindo sobre a importância da reciclagem e da cadeia circular de valor. Com as recentes ressacas, outro grupo de moradores e frequentadores está se movimentando para tentar solucionar a questão da principal rampa de acesso à praia, em frente ao Hotel Arpoador. Ela, que, há muito, já estava danificada, acabou de ser destruída pela última ressaca.
Há muito, os quiosques, como o seu, que deixaram de ser só quiosques, ganharam projeto novo e incentivo e são a cara do verão, onde acontecem festas etc. O que tem incomodado os vizinhos! Mesmo dentro da lei, eles reclamam do som, da frequência e principalmente do barulho. Qual a saída?
Existem exageros em toda parte, que devem ser fiscalizado com cuidado para não jogar fora a água com o bebê. É sempre bom não esquecer que o Rio, acima de tudo, é a cidade do encontro e da festa. Os casos problemáticos devem ser destacados e abordados devidamente. Deve-se redobrar a atenção para não generalizar. Restaurantes e bares foram setores dos mais prejudicados pela pandemia. O setor de entretenimento cumpre um papel vital, dá vida à cidade, oferecendo também maior segurança aos moradores. De qualquer forma, há que buscar soluções novas e bom-senso.
No Alalaô Kiosk, valorizamos o compromisso com o entorno por ser um espaço cultural, promovemos diversas atividades, exposições, lançamentos de livros etc. Quando se trata de atividades musicais, preferimos apresentações acústicas, quando necessário, com a mínima amplificação. Mesmo assim, usamos as caixas viradas para o mar.
Você meio que toma conta de assuntos do bairro, como o abaixo-assinado criado para remover 15 blocos de concreto que bloqueavam a paisagem, atrapalhando a descida dos banhistas. A solução para um lugar funcionar no Rio é a mobilização da população, com associações de moradores?
Amo o Rio e suas contradições. Gosto de criar projetos engajados com a cidade, que renovem o carioquismo, valorizem microexperiências autênticas locais. Nesse aspecto, o bairrismo tem o seu valor. Ano passado, promovemos um evento que batizamos de Samba do Orelhão. Numa das primeiras apresentações, uma frequentadora paulista, que caiu na roda, me disse: a Vila Madalena levaria dois séculos pra produzir samba tão espontâneo! A cultura está no ar, é importante respirar. Um futuro melhor é resultado de um presente feito de alianças e microutopias. Por que não idealizar um Arpoador-modelo que irradie inovações, incluindo um novo tipo de vivência cidadã? Para isso, é indispensável o engajamento da população, da Prefeitura, GM, PM, Comlurb, do Estado e de todas as empresas que se importam com o bem-estar coletivo.