Um crime, seja ele qual for, jamais é delicado. Contudo, quando se constrói uma trama de humor mórbido, misturando mistério e crítica, ganha-se um novo patamar. Em “Crimes Delicados”, a construção dramatúrgica acrescenta um clima de escracho que vai permitir uma dupla leitura muito interessante: aparentemente, uma comédia ligeira que traz embutida uma grande denúncia dos horrores da sociedade de classe.
“Crimes Delicados”, de José Antonio Souza (1941-2019) e direção de Marcus Alvisi, vai além da mera “revival” de um texto de quarenta anos atrás. O tempo todo, estabelece-se um permanente jogo de duplicidade, com o qual o diretor efetivamente acerta a mão. É aparentemente sério, mas é deboche. Em um cenário antigo e com figurino clássico, rola um clima extremamente contemporâneo.
No entanto, o maior acerto são dois atores, verdadeiros travestis mal montados, que tornam a essência do teatro em interpretações marcantes. André Junqueira é Lila, uma ricaça com ares decadentes, casada com Hugo (Well Aguiar). Daniel Dantas faz a memorável Efigênia, vítima recorrente, empregada do casal, que não morre nunca.
A atuação de Daniel Dantas é impressionante em todos os sentidos – desde o andar de pernas arqueadas, titubeantes, o corpo meio curvado até o mexer dos dedos e das mãos como um solteirona, como se quisesse reprimir a possibilidade de masturbação. Na duplicidade da empregada, feia, solteirona, aparentemente tosca, que Daniel capta bem, está o verdadeiro sentido do texto: o povo é, antes de tudo, um forte, incapaz de morrer. “Gracias à la vida”.
Serviço:
Teatro Petra Gold, Leblon
Sextas e sábados, às 20h30