Depois dos eventos carnavalescos, o carioca vai ganhar outro presente, nesta quinta (05/05), com o espetáculo “Grandes Temas”, do tenor Jean William, 36 anos, atual paixão da música erudita brasileira, no Teatro do Copacabana Palace. A apresentação é gratuita, como um pequenino passo para democratizar o acesso a esse tipo de música, com arranjos modernos para os clássicos e a participação de Luiza Possi. O nome de Jean começou a ficar conhecido em 2009, quando conheceu o maestro João Carlos Martins, com quem trabalha desde então. Sua voz já o levou, por exemplo, ao Lincoln Center, em Nova York; à Jornada Mundial da Juventude, em 2017, em Copacabana, quando cantou para o papa Francisco; e à Ópera de Monte Carlo, em Mônaco, com a presença do príncipe Albert II.
Nascido em Barrinha, cidade de 30 mil habitantes no interior de São Paulo, foi criado pelos avós e estudou sempre em escolas públicas. Em casa, a referência musical era o avô Joaquim, autodidata em violão e sanfona. Desde pequeno, adorava cantar. Era conhecido pela garotada da rua como “o menino que canta” — , fez parte do coral da igreja e se apaixonou pela música clássica aos 10 anos, ao ouvi-la na casa de vizinhos. E vieram outras situações incríveis. Sua história é tão excepcional que vai ganhar um livro, “O Resumo da Ópera” (Letramento), a ser lançado em 26 de maio, depois de três anos de trabalho e 50 entrevistas feitas pelo jornalista Élcio Padovez. O show é dirigido por Guilherme Leme Garcia, nome destacado no teatro musical, direção musical de Lourenço Rebetez e iluminação de Anna Turra.
Como vai ser o show?
Sempre temos um convidado nesse projeto. No primeiro, foi a Fabiana Cozza, em São Paulo; a seguir, a Fafá de Belém, em Belo Horizonte; depois do Rio, vou levar a Luíza (Possi) para Porto Alegre. Começamos esse show em 2019, com a intenção de ter um repertório de música clássica (porque sou um cantor lírico), mas que dialogasse diretamente com o público. Então escolhemos um repertório muito conhecido; além disso, convidamos artistas que tivessem a coragem de falar essa linguagem. Vamos apresentar um repertório misto, com vários temas românticos, músicas de Heitor Villa-Lobos, além de uma muita conhecida de todos, que vou cantar com a Luiza, “The Prayer” (gravada pela cantora canadense Celine Dion em dueto com o tenor italiano Andrea Bocelli).
Mas por que a Luiza?
Sempre pensei, mas deixava passar. A minha produtora entrou em contato com ela e, para minha surpresa, foi um sim muito disponível. A gente se falou por telefone; foi paixão à primeira ligação. Conheci a Luíza na quinta (28/04), quando ensaiamos num estúdio em São Paulo. A gente se falou por telefone, pelo WhatsApp, mas não nos conhecíamos. Foi um encontro muito leve, gostoso; acho que vai ser um show que vai ficar guardado no coração. Ensaiamos por duas horas e acredito que vamos ser melhores amigos. O público pode levar o lencinho que vai ser muito emocionante.
Como vai ser essa volta ao Rio, depois de tanto tempo, e qual sua relação com a cidade?
A última vez de um show inteiro foi com o maestro João Carlos Martins, no Theatro Municipal, há 10 anos, num concerto histórico. Tenho uma grande lembrança desse dia, por ter também conhecido o Edu Lobo, que estava na plateia, e de quem sou fã. Tenho histórias incríveis no Rio, tanto como turista como em palcos e nos eventos corporativos de que participei. Tenho paixão pelo Rio. A lembrança mais significativa foi quando cantei para o papa na praia de Copacabana, para quase 2 milhões de pessoas. Aquele mar de gente, não sei como explicar. A minha vida é um grande apanhado de histórias de conto de fadas.
O que é mais difícil quando sobe num palco?
Eu gosto de cantar e faço isso com a alma entregue, mas existe o nervosismo. Quem vai para o palco, principalmente o cantor, que é o instrumentista, tem essa pressão. Por mais que você tenha uma técnica, por maior tempo que pratique, o momento do ao vivo é sempre uma incógnita; por outro lado, também é estimulante. Às vezes, subir no palco e começar é doloroso, mas sair dele, depois de cantar, é o maior remédio que existe. Sou um homem de muita fé, acredito em Deus, mas tenho uma crença muito ampla da espiritualidade. Antes de entrar no palco, sempre peço permissão e toco no chão.
E a democratização é uma meta de vida?
Isso vem do meu grande mestre João Carlos Martins, que é uma grande escola, uma referência musical, de superação, de vida e de aprendizado mesmo. Foi ele que começou essa história da democratização da música. Falou que esperava isso de mim de alguma forma, em levar essa música principalmente para quem não tem tanto acesso. E foi através dele que aprendi a ter essa missão.
Quando você soube que era especial?
Quando eu era criança. Chegava da escola, subia no telhado e cantava o dia inteiro. Depois eu tive uma banda de rock e cheguei a me apresentar em barezinhos, cantei na igreja e comecei a ver que aquilo não era um prazer só meu, mas das pessoas também. Aos 16 anos, falei para uma professora de canto lírico da minha cidade que eu queria cantar rock. Ela respondeu que não entendia nada do gênero, mas eu insisti e disse: Canto lírico é igual àquele Pavarotti?” E comecei a cantarolar a paródia “dá-me um Cornetto”, inspirada no clássico “O Sole Mio”. Quatro meses depois, me apresentei num simpósio de educação. Uma outra professora, de Geografia, Júlia Guidi, me viu cantando e falou que eu era a reencarnação do (Enrico) Caruso (1873-1921), o maior intérprete da música erudita de todos os tempos. Eu não sabia quem era ele. Ela disse que eu deveria pensar nisso como uma profissão, estudar música na USP, e me levou para sua casa, em Ribeirão Preto. Pagou os meus estudos, e ali eu comecei a entender que aquilo seria uma missão.
Como foi entrar num mundo tão elitista?
Eu sempre digo que a música clássica gostou de mim primeiro; só depois, comecei a gostar dela. A dona Júlia me mostrou o repertório, me fazia ouvir música e comecei a tomar gosto. Foi um processo de educação musical, principalmente pela ópera italiana. Eu sempre digo que as oportunidades na minha vida foram grandiosas, mas desafiadoras. Teve uma professora que disse: “Você tem uma boa voz, mas não deveria cantar ópera, porque não existem príncipes negros”. Eu tinha 17 anos – aquilo foi um baque. Encontrei mais sim do que não, mas os nãos foram um impulso para eu ter um compromisso de tentar evitar que outras pessoas negras não passem mais por esse tipo de desestímulo, e que, cada vez mais, a cor da pele deixe de ser uma condição pra qualquer coisa na vida.
E você passou por um episódio recente…
Em janeiro deste ano, passei uma situação confusa. Fui abordado por policiais militares enquanto fazia uma travessia de balsa no litoral de SP. Eu estava no banco do motorista do meu carro quando um PM apontou uma arma para o meu rosto, falou para eu sair com as mãos na cabeça. Averiguaram meus documentos, mas ninguém me explicou o motivo da abordagem. Foi muito confuso e constrangedor; depois, a polícia deu uma versão. Então, hoje, não posso questionar, porque é uma versão oficial de um órgão do estado – disseram que meu carro tinha sido clonado. Mas, sendo um homem preto que passa por situações como essa, naquele momento, a única coisa que me passou pela cabeça foi o racismo.
E a biografia?
Vai ser lançada dia 26 de maio. O Élcio é um amigo; nós nos conhecemos há alguns anos. Antes da pandemia, ele teve a ideia de fazer o livro para participar de um concurso literário. Topei. Ele não ganhou o concurso, mas quis falar com algumas editoras, e a Letramento quis contar a história de superação de um homem preto no Brasil. Contei uma história verídica sem romantizar.
Foto: Fernando Mucci
Entrevista por Dani Barbi