Os cariocas — da gema ou convertidos — costumam ser apaixonados pela cidade, mas alguns vão além da simples paixão. É o caso da administradora Ana Luiza Piza e do advogado Heitor Wegmann Jr., dois ex-funcionários da Prefeitura que decidiram dar continuidade ao trabalho, cuidando de pontos importantes da cidade, com a criação do Instituto Carioca Cidade Criativa (ICCC), desde 2019, com projetos que devolvem aos moradores o prazer de ter o RJ na certidão.
O ICCC funciona como uma espécie de facilitador entre o desejo dos moradores em revitalizar um espaço público, o acesso mais curto ao poder público e a busca por parcerias privadas, ou seja, a verba para a realização dos projetos.
No momento, eles estão à frente da revitalização da Praça General Osório, em Ipanema, começando pelo restauro do Chafariz das Saracuras, obra do escultor Mestre Valentim, tombada pelo Iphan desde 1938. O trabalho, 100% bancado pela iniciativa privada a R$ 1,3 milhão, será entregue em setembro. Inclui a reforma do gradil, paisagismo, mobiliário, parque infantil, além de uma academia da terceira idade, um novo parcão (área cercada para cães), nova sinalização (com totens, flags e mapa) e circuito com 16 câmeras de segurança. O ICCC já devolveu à cidade o portão do Parque Guinle, o Parque da Catacumba, na Lagoa, e o Baixo Bebê do Leblon.
O sonho e o maior exemplo de Ana vêm de fora: transformar as praças e parques do Rio numa espécie de Central Park (NY), que, através do modelo de parcerias público-privadas (PPPs), permitiu a recuperação do mais famoso parque urbano do mundo, hoje, mantido 90% pelo privado e apenas 10% pelo poder público.
Como você foi parar no poder público?
Sou formada em Administração, tenho pós-graduação em Marketing, com especialização em Liderança, e trabalhei 15 anos com moda, até 2005, quando minha primeira filha nasceu. Deixei o trabalho e comecei a viver a cidade novamente, empurrando carrinho de bebê pelas pracinhas, pelo Baixo Bebê da Lagoa, andando pelas calçadas de Ipanema para levar ao colégio — era um suplício, com tudo esburacado e sem um lugar 100%. Foi então que começou minha relação de amor e ódio com a cidade. Quando você viaja pra fora do País, vê tudo lindo; quando volta, é tudo ruim, e nada funciona. Por quê? Naquele momento, o Rio ganhou a eleição para sediar as Olimpíadas de 2016. Pensei que poderia ajudar de alguma maneira com muitas ideias. Foi quando alguns amigos me chamaram pra conhecer a Secretaria de Conservação, que eu nem sabia que existia. Achei o máximo e fui parar lá; assim comecei a minha vida pública, no amor. Isso foi em 2011, no final do 1º mandato de Eduardo Paes.
O que é mais difícil fazer estando num órgão público?
O mais difícil continua sendo o que eu enfrento hoje, que é unir o poder público aos empresários para revitalizar, requalificar, reestruturar uma área pública e fazer o cidadão entender que ele faz parte daquela solução. Tanto o empresário quanto o morador do bairro ou quem possui negócio ali têm que resolver os pequenos problemas diariamente, e não a Prefeitura. Estamos muito atrasados nesse sentido.
Qual foi o trabalho que mais marcou você nesse tempo?
Foi principalmente quando o Heitor, meu sócio, apareceu na minha vida, quando ele era presidente da Associação de Moradores do Jardim Botânico e me procurou para perguntar sobre reformas em praças. Enquanto Prefeitura eu poderia dar pedra, concreto, saibro, iluminação, mas não tinha mais recursos, a cereja do bolo que a máquina bruta da Prefeitura não consegue oferecer. Ele ficou de bater às portas de empresários da região; com isso, conseguiu reformar todas as praças do bairro num tempo recorde. Entrei na Conservação como assessora; depois de um ano e meio de muito trabalho, é que ocupei o secretariado. Antes de trabalhar lá, eu dizia que era carioca, mas eu não era carioca. Conheci os sete cantos da cidade, todos os bairros, mais de 15 comunidades. Eu vivia na bolha da Zona Sul e achava que era uma carioca… Porcaria nenhuma. E também acompanhei o Parque de Madureira desde a época em que era um terreno baldio. Foi um sonho. Eu fiz mestrado em Administração Pública. Isso não tem preço.
E como surgiu o ICCC?
Acabou a gestão de Paes. Eu e Heitor ficamos muito amigos e nos perguntamos: mas esse trabalho todo vai ser jogado fora? Levamos um ano e meio para montar o instituto e, em seis meses, estávamos em busca dos primeiros projetos, que foram o Parque da Catacumba e o Portão do Parque Guinle.
Como acontece a escolha dos projetos?
O portão foi um pedido dos moradores enquanto eu estava na Conservação; não pude atender por falta de recursos; então conseguimos tudo com a iniciativa privada. Por ser moradora da Lagoa, achava um absurdo ter um parque debaixo do meu nariz e completamente abandonado. Daí sugeri o Parque da Catacumba à Secretaria de Meio Ambiente. Temos ali 32 monumentos, obras de arte que estavam se deteriorando. Ou seja, como eu posso pensar em fazer algo em outro lugar, sendo que ali estava um horror? A gente tem que ver a cidade como uma extensão da nossa casa.
Qual a parte mais difícil?
Cheguei à Conservação como administradora do mundo da moda e mãe. Tive que estudar muito para saber o motivo de dar certo em várias partes do mundo, e aqui, não. Há seis anos, estava em um seminário no Rio, do qual participou a fundadora do Central Park Conservancy, Elizabeth Barlow Rogers, entre outros do ramo. Então tive a oportunidade de conversar, conhecer e entender por que lá fora está tudo mais avançado. O processo do Central Park, por exemplo, começou em 1970, quando Abby Murdock, da American Express, morador local, não aguentava mais viver num lugar onde só tinha assaltante, prostituta, cracudo. Foram 10 anos para ele implementar o projeto do Central Park, que hoje é o maior case de sucesso do mundo das iniciativas público-privadas. Tanto lá quanto aqui, existem os mesmos problemas, com uma única diferença: a postura do empresário, que devolve pra cidade o que recebeu. O modelo público-privado é tão bem-sucedido que 90% dos recursos do parque são da iniciativa privada e só 10%, do poder público.
Por que entrar nessa?
Porque eu amo. Nasci em 1970 – isso faz algum sentido na minha lógica de vida. Tenho 51 anos, então o que me custa pensar em melhorar a cidade? Não vai ser pra mim, mas para as minhas netas. É a paixão da minha vida.
E o projeto atual?
Em abril, entramos na General Osório. Começamos pelo restauro do Chafariz das Saracuras, uma joia barroca colonial, de onde todas as tartarugas e saracuras foram furtadas. Há mais de cinco anos, está desativado e deteriorado. A história do chafariz é linda: ele foi encomendado pelas irmãs carmelitas para levar água para o convento, que, anos depois, foi demolido para dar lugar à Praça Cardeal Arcoverde. O chafariz foi para o depósito da prefeitura, ficando lá por anos, até que, na fundação da praça, ele voltou e ali passou a virar ponto de encontro dos ipanemenses. A história é rica e linda. Para termos um controle, vamos ter um circuito com 16 câmeras monitorando 100% e levando as imagens para a base do Ipanema Presente. Conseguimos R$1,3 milhão, 100% da iniciativa privada.
Como lidar com a depredação e o vandalismo?
O vandalismo é esperado porque a mudança de mentalidade sobre conservação do que é nosso não acontece da noite pro dia; em NY, levou 10 anos, e o cara não desistiu. O que não podemos fazer é viver achando que não vai dar certo. Importante é você batalhar e crescer, evoluir e entender que, numa cidade, tudo acontece de forma orgânica e coordenada. Quando a gente entrega um projeto, os próprios moradores começam a se sentir donos daquilo, a reclamar, a zelar e a buscar caminhos para manter aquilo bonito. São evoluções. Em todos os nossos projetos, a gente envolve todos que ali moram. Isso cria um sentimento de pertencimento forte.
Foto: Dan Coelho
Entrevista por Dani Barbi