Há quem diga que, na série “Diários de Andy Warhol”, na Netflix, baseada no livro de Pat Hackett, tenha faltado uma grande personagem da vida do artista: Carmen D’Aléssio, amiga de Andy e relações-públicas do Studio 54 (considerado o clube mais louco e incrível de todos os tempos), muito mostrado na série, de onde ele era assíduo. Procurada para falar sobre Andy,
Carmen esclarece de cara por que não está no documentário: “Não estou porque a abordagem foi de outro ângulo da vida dele, que não o social.” Carmen D’Alessio, chamada de lenda da noite nova-iorquina, conheceu Andy sete anos da inauguração da boate, em 1970, quando fazia RP de um desfile de Valentino em Roma. Os dois pensaram até em montar uma agência de modelos, “Twinkies” (cupcakes), só para homens jovens.
Warhol fala de Carmen em algumas publicações na imprensa internacional; numa delas, disse: “Carmen tem uma lista que vale uma fortuna. Tem os nomes (escritos corretamente), endereços (de casas de verão, inverno, cidade ou campo) e números de telefone (com códigos de área incluídos) de todas as pessoas bonitas, jovens e ricas”. Ele também citou que “Carmen é o jet set”, frase que ela está pensando em colocar em seu epitáfio.
D’Alessio tem o seu retrato na parede da sala em Nova York, onde mora desde 1967, assinado por Andy, com declaração de amor. Antes disso, trabalhou na ONU e, como relações-públicas, nas lojas de Yves Saint Laurent e Valentino. Assim, conheceu o jet-set internacional. O Studio 54 fechou definitivamente em 1985, quando os donos foram presos por sonegação de impostos.
Vindo para a vida corrente, muitos brasileiros que a procuram costumam passar bons momentos em NYC. A peruana, sem idade (“sou eterna”), vem sempre ao Rio de férias, todos os verões: “Sou peruana de nascimento, americana de criação e carioca de coração”, diz a inquieta, que chegou a NY em 1965. Carmen continua promovendo lugares, mas agora com listas mais restritas, como a Casa Cipriani, Baby Brasa e no terraço do Dream Hotel, no Meatpacking District.
Quais suas impressões da série sobre Andy Warhol?
Eu achei maravilhoso, porque fala de um aspecto de Andy que não era conhecido. Fala sobre a identidade, o pessoal, sobre o conflito interno de ele ser católico e gay — um aspecto pessoal que ninguém conhecia. Isso é muito interessante porque ele era um homem extremamente sensível, muito tímido, se apaixonava pelos namorados e não podia viver sem eles. Ele se entregava… A gente tinha uma percepção que ele poderia ter algum problema relacionando a sexo, porque ele não falava da vida privada, mas era muito intenso. Andy teve grandes amores e sofria por eles, se apaixonava e ninguém conhecia isso dele. Era glamouroso e muito seletivo com quem estar. A gente se entendia muito bem e éramos parecidos em vários aspectos. Quando estávamos no Studio 54, por exemplo, a gente gostava mais de olhar do que de falar. Sentávamos juntos e ficávamos olhando as meninas e meninos que dançavam.
Como você conheceu Andy?
Nos conhecemos em 1970, em Roma, quando eu fiz a relações-públicas de um desfile do Valentino. Tinha duas irmãs americanas, minhas amigas, que me apresentaram a ele na Piazza del Popolo. Quando ele me conheceu, ficou fascinado porque eu falava vários idiomas (inglês, francês, italiano, espanhol e português). Me amou porque ele adorava gente cosmopolita. Me viu uma peruana, ‘international’, se criou a amizade que depois continuou. Sete anos depois, ele me proporcionou parte da lista para abertura do Studio 54. Fez o meu perfil para a revista “Interview”, me fotografou no Studio vazio, e colocou o título “Oh, Carmen Miranda, Move Over” (“Oh, Carmen Miranda, saia daí”) e fez um movimento na cidade para a festa de abertura. No dia, uma multidão de seis mil pessoas esperava na porta, com listas não só de Andy, como também do Calvin Klein (estilista), Francesco Scavullo (fotógrafo de moda) e muitos outros. Eu também fui a fundadora e criadora do Studio graças à ajuda de toda essa gente.
Muitos brasileiros sentiram sua falta no documentário. Chegou a ser chamada para dar entrevista?
Não fui chamada porque a abordagem foi de outro ângulo da vida dele, que não o social. Se concentrou mais nele e nas relações que ele teve; foi por isso que eu gostei muito. Ele se apaixonava e, quando se apaixonava, não largava, era mais provável que ele fosse largado. Uma das maiores paixões da sua vida foi o Jed Johnson, um dos Twin Brother (decoradores famosos na época), que lamentavelmente morreu num acidente aéreo (1996).
Que principais lembranças você tem do Studio 54?
Não existe um momento, porque foram muitos inesquecíveis. Quando eu me reunia com o Steve para organizar os eventos, ele nunca recusou uma ideia, por mais louca e custosa que fosse. Andy dizia que ‘o Studio 54 era uma ditadura na porta, mas uma democracia na pista de dança’. Era exatamente isso. Ele sempre foi mais observador e ficava na dele. Giorgio Armani queria uma festa de aniversário como se estivesse num palácio romano. Então contratei 20 violinistas vestidos de branco para quando ele entrasse, se sentisse num palácio; levei bailarinas travestis, e foi incrível. No aniversário do Valentino, foi instalada uma arena de circo com areia e tudo, com sereias em trapézios em figurinos emprestados por Fellini. Então não existe um evento que marcou; todos foram lindos, cada um do seu jeito. Não gosto de falar muito de mim, mas a minha festa de aniversário quando eu saí do meu próprio bolo de maiô foi uma das melhores, com uma brigada dos Hell’s Angels acelerando suas motos dentro da pista. Mas tudo isso está no livro “Studio 54: The Legend” (1997). A minha memória passada é ótima. Eu me lembro de tudo como se fosse ontem, mas a recente é péssima.
Quando sabem da amizade entre vocês, as pessoas ficam curiosas?
Perguntam, mas eu não gosto de falar muito do pessoal, porque acho que as particularidades não devem ser compartilhadas. Era mais privado, estávamos com projetos, íamos fundar uma agência de modelos porque nós dois gostávamos de meninos lindos e jovens, e outros projetos que ninguém sabia. A gente se divertia juntos. Ele me confessou que morria de medo da cirurgia (Andy morreu aos 58 anos, por complicações de uma cirurgia na vesícula). Ele me disse que, se entrasse na sala de cirurgia, não sairia vivo. E a verdade é que não saiu. Quem iria imaginar? A cirurgia foi ótima, mas ele foi negligenciado; acredito que foi um descuido da enfermeira. Ele morreu por um erro — segundo reportagens da época, ele ainda aparentava estar bem quando a enfermeira particular foi checar seu estado, às 4h da manhã. Mas duas horas depois, ela o encontrou azulado e sem responder. Segundo a autópsia oficial, ‘fibrilação ventricular’ foi a causa da morte, ou seja, o coração de Warhol passou por intensa palpitação e parou.
Em sua casa, em NY, tem um quadro de Andy feito pra você. Em maio, um retrato de Marilyn Monroe, em leilão na Christie’s, pintado por ele em 1964, tem grandes chances de se tornar a obra de arte mais cara vendida em toda a história – por US$ 200 milhões (R$ 986 milhões). Pensou algum dia em vender o seu?
O quadro que Andy fez pra mim está aqui! Porque é uma coisa que foi dedicada a mim: ‘To Carmen with love, Andy” (“Para Carmen, com amor, Andy”, recita). Já me propuseram comprá-lo, mas para mim tem um valor sentimental, entende? Então não consigo pensar em vendê-lo e é de uma série de litografias limitadíssima. Eu tive uma litografia de Andy retratando Mao Tsé-tung (o líder comunista chinês) que eu vendi para um colecionador de São Paulo depois de muita insistência. Ele sempre dizia que, quando um artista dá um presente, se você precisar, pode sempre vendê-lo.
O que você diria ao Andy hoje?
‘Congratulations on always been true to yourself’ (‘Parabéns por sempre ter sido fiel a si mesmo’).
Fosse nos dias de hoje, acredita que um Studio 54 sobreviveria a tamanha caretice?
Acho que não. A gente está ansiosa por diversão depois de uma pandemia – essa é a verdade. Mas a tendência em Nova York – cidade que, quando se trata de inovação, é a top do mundo – está muito de acordo com meu modo de sentir, que é um clima de nostalgia, as ‘speakeasy’ (‘fale baixo’, que vem da época da Lei Seca americana, entre 1920 e 1933). A moda agora são lugares pequenos, exclusivos, com shows ao vivo, principalmente de jazz. Estou abrindo, esta semana, um ‘speakeasy’ pequenito no segundo andar do Baby Brasa, restaurante do também peruano Franco Noriega. Eu sou uma madrinha para ele, que não faz nada sem me consultar. Nos últimos 10 anos, eu faço os happy hour do terraço do Hotel Dream, das 17h às 23h. Adoro esse horário porque é de acordo com a minha idade. E também tem DJ tocando música dance tipo Studio 54 – esse é o meu conceito. É tão pequeno que só cabem 30 pessoas sentadas, então está sendo muito fácil pra mim (gargalhadas). É muito mais exclusivo, ter mais qualidade que quantidade. Agora parei com a moda e entrei nessa.
O que sente falta daquela época? Mantém contato com as pessoas que conheceu no Studio?
Cada época é uma época. Não sinto falta de nada. Era como eu me sentia e agora, com essa idade, os eventos foram se modificando. Muitas das pessoas já morreram, mas estou sempre reciclando a minha lista. ‘You have to go with the flow’ (‘você tem que ir com o fluxo’). A coisa continua, o que foi já foi e hoje é hoje, amanhã ninguém sabe. Tem que olhar sempre pra frente.
Você perdeu muitos amigos para as drogas, Aids e overdoses. Você se sente uma sobrevivente?
Me considero uma sobrevivente porque fiz de tudo, mas com moderação e em seu momento. Nunca fui viciada em nada, nem café. Eu preciso estar no controle, mas nada me controla. Eu sou uma pessoa altamente disciplinada e tenho muita força de vontade.
Como é sua rotina?
Você não vai acreditar… Eu rezo, medito, faço respiração, ioga, alongamento, e toda a minha rotina é altamente espiritual. E pratico tudo isso há muito tempo, como uma espécie de disciplina, para me dar estrutura, equilíbrio e paz. Eu gosto de transmitir amor, luz, alegria, paz, todas as coisas boas da vida. Pra poder estar com esse tipo de vibração e trazer a festa, que para mim é a celebração da vida, a NY depois de uma pandemia é uma tarefa dada por Deus. Aí fica fácil para mim praticamente, pois é algo inato em mim, então para ficar nesse astral, tenho que estar muito bem comigo mesma, bem saudável, senão não dá. Hoje, para ter energia para fazer um evento, tenho que estar mais disciplinada que nunca, a ponto de não aceitar sair à noite. E também gosto de comer só proteína, verduras carnes, saladas, frutas e nada de carboidrato. Por isso, prefiro não sair para não cair em tentação; fico tranquila em casa. E faço jejum intermitente – a partir das 18h, não como mais nada porque, quando chega quinta, sexta e sábado, não paro… São muitos drinques, muita comida, daí engordo uns três quilos e tenho segunda, terça e quarta pra perder.
Você tem medo de alguma coisa na vida?
Não, mas a única coisa é que estou sempre rezando para ter paz. A paz que eu consigo me dá a maior tranquilidade espiritual e física, mas mentalmente tenho que reconhecer que sou ansiosa, perfeccionista. Então preciso procurar o equilíbrio porque quero que tudo saia prefeito. Faço até o que não é parte do meu trabalho, mas faço porque quero que saia tudo certo. Tudo sempre pode dar errado no último minuto, então tem que estar tudo muito bem planejado.
numero:13 O que o Rio significa pra você?
Eu amo o Rio. É a minha cidade favorita no mundo. Sempre falei: sou peruana de nascimento, americana de criação e carioca de coração. Me identifico com os brasileiros, pensamos igual, temos o mesmo astral, e o carioca é solar como eu, tem natureza privilegiada, abençoado pelo Cristo Redentor. Essa cidade não tem igual, com a possibilidade de estar na praia, entrar no mar, e tudo isso é vitamina D, que é indispensável como um spa natural para me manter com energia. A minha energia vem do sol, do mar e do Rio, porque, quando estou no Rio, é o melhor momento do meu ano — é aí onde estou mais feliz. Só não me mudo por causa do meu trabalho, porque, em NY, graças a Deus, as pessoas me entregam todos os tipos de projetos, os melhores.
Entrevista por Dani Barbi
O clima do Studio 54: