Gostar de música clássica deixou de ser uma caretice para gerações mais novas. Isso, pelos maestros de vanguarda, como o carioca Carlos Prazeres, 47 anos, o Kiko, regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA). Essa democratização da música de concerto vem de família: o irmão Felipe Prazeres, spalla da OPES, também tem um olhar atento para o novo, assim como o pai de ambos, Armando Prazeres (1934-1999), criador da OPES, que praticamente criou a cartilha da popularização da música clássica, levando a orquestra a pessoas que não tinham acesso.
Este ano, Carlos completa 10 anos à frente da OSBA, já é cidadão baiano e, neste período, houve um aumento de 200% no público da orquestra, hoje a única com um fã-clube organizado, apelidado pelo maestro de “público crush”. Os números são reflexo da criação de projetos descontraídos e acessíveis, como os saraus, o Cine Concerto, o Futurível e a série Mãe Menininha do Gantois — nas apresentações, foram usadas essências que ativaram o olfato —, além da participação de poetas, bailarinas e nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiz Caldas e novos artistas da cena cultural erudita, como o pianista Cristian Budu.
Na quinta (16/12), Carlos participa de outro projeto nesse clima, o “Prudential Concerts 2021”, no teatro Prudential, na Glória, regendo a orquestra que vai tocar com a Banda Melim, dos irmãos Rodrigo, Gabriela e Diogo Melim, com transmissão no Multishow. A edição tem curadoria artística de Zé Ricardo, o mesmo do Palco Sunset no Rock In Rio.
E, no dia seguinte (17/12), ele rege o “Natal da OSBA”, no Teatro Castro Alves, em Salvador, com a participação do pianista Adilson Rafael, o “Dirceu dos Teclados”, que viralizou em agosto deste ano, ao tocar piano num shopping e, além de multi-instrumentista, é ambulante.
São 10 anos à frente da OSBA e um público crescente. Como você explica isso?
A OSBA é uma orquestra que vivencia e dialoga com a sociedade. Além disso, ela busca mudar os padrões estagnados da música de concerto, começando pela nossa imagem. Tudo isso atrai um público apaixonado e fiel.
E outro dado diz que, entre batidas e samples, charts, pisadinhas, traps, funks, e números exorbitantes de plays, a música clássica tem agradado aos jovens; um streaming até vai lançar um app dedicado ao gênero em 2022. Acredita que isso se deve a nomes como você e seu irmão, que tornam a música clássica mais acessível?
Modéstia à parte, dentro do Brasil, acredito sim. Tenho sentido uma mudança muito grande na relação da música clássica com a juventude. Ela está vendo que este estilo de música é transgressor como o jovem.
Bahia, terra do axé, e você comandando uma orquestra… Como é?
Em nenhuma parte do mundo, tive uma resposta tão boa de público como aqui na Bahia. Isso se deve a algo muito elementar: a Bahia é vanguarda, sempre foi vanguarda. Basta lembrar que foi aqui que nasceu a Tropicália.
A OSBA é a única orquestra no Brasil com um fã-clube e já tocou Anitta, Pabllo Vittar, Bum Bum Tam Tam e Beyoncé. Você recebe críticas de músicos tradicionais por isso?
Na verdade, quando interpretamos esses ícones da música pop, estamos apenas dizendo ao nosso público que pode existir uma grande festa da música onde nós podemos tocar, mas jamais tentar civilizar alguém. Em verdade, não estamos misturando música clássica com nada, uma vez que tocar Anitta com orquestra não é misturar estilo algum, e, sim, dar à música da Anitta novas cores e timbres. Continua sendo pop — simples assim. No entanto, apesar de dedicar uns 3% de sua temporada a essas performances, a OSBA também é uma das orquestras mais transgressoras e ousadas no que diz respeito ao repertório da música de concerto. Schoenberg, Messiaen, Shostakovich, Paulo Lima, Honneger, Lutoslawski, entre outros, são figurinhas fáceis nos nossos concertos. Algo bem difícil de se encontrar na maioria das orquestras do país, que muitas vezes optam por tocar somente o repertório tradicional, ou seja, compositores do período romântico, como Tchaikovsky ou Rachmaninov, por exemplo.
Qual seu maior diferencial?
Acredito que seja o meu repensar sobre o fazer sinfônico. Questionar padrões vigentes e determinar novos e atualizados rumos para o futuro da música de concerto.
Seu pai foi um grande maestro e um dos precursores em popularizar a música clássica. Seu eterno professor, Isaac Karabtchevsky, segue o mesmo caminho. Como foi ter esses exemplos?
Foram exemplos fundamentais. E aqui cabe uma importante reflexão. Alguns confundem “popularizar” a música de concerto como algo que a transformaria em música popular, e isso não procede. Popularizar é levar ao povo, é tornar acessível a todos, e não só a uma elite.
Acha que talento pode ser hereditário? Seu irmão também foi pelo mesmo caminho e, além disso, também foi para o pop. Se vivo fosse, seu pai estaria maravilhado de orgulho, tenho certeza…. Como você superou o que aconteceu?
Acredito que seja, sim, por parte de pai e mãe. Minha mãe é uma profunda conhecedora de música clássica, ela só escuta esse gênero. Nosso pai hoje é um grande exemplo, e sua luz nos ilumina o tempo todo. Em muitos concertos, chego a sentir a presença dele perto de mim. Com relação à superação, o tempo transformou a dor da perda em luz e admiração. E a saudade hoje é aquela saudade boa, de celebrar os velhos tempos, de lembrar da nossa intimidade. A figura de Armando Prazeres só merece esse tipo de sentimento; afinal, ele era pura luz.
Em que momento você decidiu tornar-se maestro?
Ainda na Alemanha, assistindo à regência de Cláudio Abbado e Simon Rattle na academia da Filarmônica de Berlim. Eu ficava maravilhado com a possibilidade de dar a minha interpretação de uma obra. Ali foi plantada a semente. Quando eu voltei ao Brasil, depois de alguns anos atuando como oboísta da Petrobras Sinfônica, Theatro Municipal Carioca e Sinfônica Brasileira, vi que teria muito mais ferramentas para levar a música a todos na condição de maestro.
Como vai ser esta apresentação com o grupo Melim no Rio? E quais seus projetos para 2022?
O Prudential Concerts une a música de concerto com o pop num mesmo espetáculo – uma festa da música. Em 2022, além dos 40 anos da Orquestra Sinfônica da Bahia, tenho o Prudential Concerts, Música em Movimento, em parceria com meu amigo Rafaello Ramundo, um cara que está revolucionando a cultura deste país. São concertos especiais, em que o artista pop se envolve com o clássico, em parceria com o laboratório EMS. Também vou reger concertos já confirmados com a Filarmônica de Bogotá e um balé Romeu e Julieta no Teatro Colón de Buenos Aires.
Em uma entrevista, você disse que a música brasileira é a melhor do mundo…
Eu não tenho a menor dúvida de que a nossa música pop está entre as melhores do Planeta. Lá fora, todos ficam encantados com a enxurrada de talentos do Brasil. Estive em Portugal recentemente e, além do fado, só escutei música brasileira! No Japão, onde estive em 2008, eles idolatram a nossa música. Resumindo, mesmo vivendo momentaneamente, sem sombra de dúvidas, a nossa pior imagem no exterior, nossa arte sempre vai salvar o nosso filme.