Não começou na Fernanda Montenegro e, pelo visto, não vai terminar no Gilberto Gil. As recentes eleições para a ABL provocaram um acalorado debate sobre a conveniência — para não dizer impertinência — de ambos ocuparem assentos na Casa.
“Ela é atriz! Ele é músico! Celebridades, puro marketing!” — escandalizaram-se os higienistas literários de plantão.
Como se trata de uma academia de letras — sim, DE LETRAS, monkeyhood! — eu vou logo cometendo o truísmo de dizer que me parece um local mais que apropriado para receber um…letrista.
E não há na ABL um letrista que tenha escrito mais letras que o Gil. Podem somar os repertórios dos imortais Antônio Cícero e Geraldinho Carneiro!
Também vou revelar um segredo. Em 2016, o Nobel de literatura foi dado a Bob Dylan, apesar de ele — que horror! — tocar gaita e violão enquanto recita suas letras.
O estatuto da ABL, dos idos de 1897, tem por requisito a publicação “de obras de reconhecido mérito” (art.2°) e publicar é tornar público. Gil o faz através da música.
“Ãããiiin, mas e a Fernanda Montenegro? Hein, hein?” Ela o faz através das artes cênicas, ó pá. Ou não? Plateia, telespectador, eis o rrrrrespeitável público.
O paradigma para a indicação de nossa grande dama é, por sinal, o Nobel de literatura de 1997. Um artista que, como disse Roberto Birindelli, “quando está em cena, transforma o menor movimento numa coisa enorme. Ele apenas mexe a mão e o teatro inteiro percebe o que ele está contando.” Nada mais Fernandona, mas esse é outro gênio dos palcos, o italiano Dario Fo que, por ironia do destino, morreu no mesmo dia em que Dylan ganhou o dele.
Acrescento que a ABL tem o Santos Dumont que escreveu a planta do 14Bis; o Pitanguy, que escreveu um livro de memórias; o Roberto Marinho que escreveu uma autobiografia; o Alfredo Pujol que escreveu um manual de direito.
O Dr. Oswaldo Cruz, que batiza o bairro berço do samba carioca, escreveu relatórios médicos sobre bactérias e soros terapêuticos.
No papel, a Fernanda Montenegro só escreveu um livro (autorreferente e em parceria com uma jornalista) e participou de uma obra coletiva (escreveu sobre Hamlet). Nenhum foi best seller. Paulo Coelho é best seller.
Escrever um livro é um requisito da ABL. Ela preencheu, como a turma aí de cima.
Mas a Fernanda fez muito mais pelas letras que todos eles juntos. Ela levou para o palco a literatura de Moliere, Nelson Rodrigues,
Adélia Prado, Shakespeare. Em termos de letras, para uma academia de letras, eu acho que basta. Os acadêmicos também.
Há quem não. Eu entendo.
Absurdo dos absurdos é cogitar que a eleição de Gil e de Fernanda seja uma jogada da Academia para se manter em evidência. Não bastassem os eventos e as palestras que promove, a frequência com que a imprensa noticia os obituários dos nossos imortais já cumpre plenamente essa função midiática.
Deixo para você, amigo saudoso dos pergaminhos, vegano da letra impressa, adicto do Kindle, uma valiosa receita gastronômica do Dario Fo: “Acreditamos que o gesto e a gestualidade são sempre a salada, o acompanhamento, enquanto o prato principal, a carne, é sempre a palavra.”
Viva Gilberto Gil, viva Fernanda Montenegro, esses chefs que nos alimentam a alma com irresistíveis delícias literárias através de seus ofícios. Agora, com direito a um chazinho.
Helinho Saboya é advogado em tempo integral, chef eventual, bem-humorado e adora gastar muito tempo com cachorros.