Alcoolismo é assunto dramático, sabemos, e pode virar de estigma a piada em conversas sociais, principalmente quando se trata de mulheres. E elas foram as que mais procuraram ajuda na pandemia, em redes de apoio mútuo, como, por exemplo, nos Alcoólicos Anônimos (AA): foram, mais ou menos, 1.000 novos integrantes no País, de março do ano passado, quando começou a pandemia, até hoje e, desses, 40% são de mulheres.
Conhecendo o assunto, por experiência própria, quando viu o aumento dos números, a atriz Alessandra Gelio, 38 anos, também diretora e educadora emocional, criou a peça documental “Alcoólikas”, com estreia dia 20 de novembro, às 20h, no YouTube, com ingressos no Sympla. “Muitos não sabem que se trata de uma doença catalogada pela OMS como progressiva, incurável, de terminação fatal e que, antes de matar, desmoraliza”, diz ela, uma vítima, sóbria há quatro anos.
Alessandra ouviu mais de 500 depoimentos nos últimos anos, mas escolheu quatro para mostrar, na peça, mesclados à personagem Karina, que vai percebendo as confusões em que se mete por problemas etílicos. “Ela acredita que não tem problema nenhum, é negacionista, mas os problemas começam a saltar diante de seus olhos. A partir daí, ela percebe que o álcool não é tão inofensivo e divertido como imaginava”, diz Gelio.
“AlcoóliKa” mantém a identidade confessional dos projetos de Gelio, que costuma levar traços da própria história para a dramaturgia. A escolha pelo virtual foi pela exploração da linguagem audiovisual, com a relação com a câmera, em que o espectador é posto no lugar do terapeuta e, no fim, vai permitir que o público faça perguntas à atriz por chat.
Alessandra Gelio é um exemplo de quando a própria dor vira arte.
Como surgiu a ideia?
Já tinha vontade de fazer algo artisticamente, sobre alcoolismo, há quase 10 anos. Eu mesma tive problema e comecei a me tratar aos 29 anos. Muitas pessoas acham que alcoólatra é só quem bebe todos os dias; não é bem assim. A pessoa pode beber apenas aos fins de semana, por exemplo, ou de 15 em 15 dias, mas a maneira como bebe é que determina se ela é alcoólatra ou não. Eu, por exemplo, não bebia todos os dias, mas quando o fazia, aquilo atrapalhava a minha vida. Descobri que é uma doença incurável e que o único tratamento é a partir da abstinência contínua. Não tem como tratar essa doença sem evitar o primeiro gole, porque é uma doença de compulsão. O cérebro já aciona, no sistema de recompensa, um pedido desenfreado de ingestão de mais e mais.
Como foi sua história com o álcool?
Tive uma tia que era adicta, teve problemas com álcool e outras substâncias. Ela ficou frequentando irmandades de ajuda mútua por oito anos, mas entrou em processos de recaída, até que morreu aos 45 anos. Eu já conhecia algo sobre a doença, só que, por ser uma doença progressiva, o nível da minha tia era muito mais adiantado que o meu; então eu não me via alcoólica. Volta e meia, minha avó recebia, de madrugada, ligação da minha tia, caída num posto de gasolina, e lá ia minha avó buscá-la. A gente cansou de vê-la em níveis absurdos. Chegamos a ficar muito próximas, mas nunca fomos amigas de copo.
Uma coisa puxa a outra?
Minha primeira adição foi a maconha na adolescência. Eu bebia, mas adição mesmo eu tinha à maconha. Parei de fumar aos 24 anos, porque me sentia muito mal e migrei para o álcool. A compulsão migra. Meu consumo alcoólico começou a aumentar quando parei de fumar. E uns três anos mais tarde veio a cocaína. Mas era muito esporádico. Ficou semanal por pouco mais de um mês e eu percebi rápido que estava dependente porque tinha acabado de perder minha tia pelo mesmo problema: álcool e drogas. Engraçado que a vida inteira eu disse que jamais usaria cocaína, tinha horror, achava algo extremamente pesado. Até o dia em que usei. Mas quando eu falo substância é porque não faz a menor diferença. A doença é a mesma, não interessa de que substância se trata. Álcool é droga e a mais perigosa, porque é lícita, tem seu uso incitado e é associado a sociedade e celebração na sociedade. Imagina numa festa substituir todos os copos de álcool por baseados de maconha ou carreiras de cocaína? Só assim, fazendo essa reflexão, a gente vê que a sociedade se droga diariamente de uma maneira que todo mundo acha perfeitamente natural e aceitável!
E quando foi que pediu ajuda?
Descobri o alcoolismo porque usei outras substâncias (maconha e cocaína). Minha tia morreu em julho de 2012 e, no fim de setembro do mesmo ano, uma amiga chegou de Londres, doida pra sair, e eu evitando, até que, em algum momento, eu cedi e ia pra Lapa com ela. Usar outras drogas aumenta muito o consumo alcoólico, só que comecei a fazer isso todos os fins de semana: começava na sexta e só terminava no domingo. Quando passava o efeito de tudo, eu tinha taquicardia e certeza de que ia morrer igual a minha tia, e começava a rezar. O álcool influencia outras drogas. Quando eu jurava e pedia a Deus para não morrer, na semana seguinte, como num fenômeno inexplicável, eu estava no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas; isso se repetiu nos cinco fins de semanas seguintes. Nisso, eu já tinha um filho de 10 anos e, aos 29 anos, minha preocupação era como eu comemoraria os 30, uma idade emblemática. E eu já conhecia aquilo, então, passei a mão no telefone e pedi ajuda.
Qual o maior problema no alcoolismo?
A adição engloba tudo — não se trata da compulsão pela substância, essa é a ponta do iceberg. Na realidade, a doença se trata de uma profunda inabilidade de lidar com as emoções e com a vida, portanto com as relações que eu estabeleço comigo, com o outro e com a vida e, por não saber dar conta disso, a pessoa vai em busca de algo que a tire da realidade ou a anestesie. O negócio é muito mais profundo — não é só tirar o álcool, porque existe uma diferença enorme entre estar abstêmia e ficar sóbria. Agora, eu posso dizer que estou sóbria porque estou cuidando de outras questões: a forma de lidar comigo, com o outro, com a vida.
O que é mais difícil no processo?
Existe uma característica que é a negação, que não é só do alcoólico, mas da sociedade, que nega o alcoolismo. Existe a negação da família, e o próprio alcoólico cria altas justificativas para suas bebedeiras. Eu só percebi porque entrou outra substância na jogada e vi que minha maneira de beber nunca foi normal. Eu sentia uma voracidade, insaciabilidade, que, inclusive, se manifesta em várias áreas da minha vida, inclusive na comida. É muito difícil a aceitação porque o álcool é uma droga lícita, promovida, incentivada, enaltecida… Fazem piada com assunto e tem até a frase ‘desconfie de quem não bebe’… Isso é muito louco. Quantas mortes não acontecem em acidentes com gente bêbada? Por muitas vezes, o estigma atrapalha em pedir ajuda, principalmente por mulheres. Quantas vezes você já ouviu a frase “mulher que bebe é muito feio” e “homem bêbado é bonito”?
Algum relato a chocou mais?
Têm muitas coisas parecidas, mas tem uma que ouvi, não diretamente da pessoa, mas de outras em tratamento, de que existiu um cara que se destacou por ajudar todo mundo dentro da irmandade. A história dele é a seguinte: um belo dia, ele acordou na prisão, sem saber o motivo. Começou a chamar o carcereiro e pedir para usar o direito de fazer uma ligação; dizia que queria ligar para a mãe. O carcereiro virou e falou: “Ligar pra sua mãe? Você está aqui porque você matou a sua mãe!”. Ou seja, se ele estivesse sóbrio, jamais teria cometido esse ato.
E você, passou por perrengues?
Já acordei em lugares e com pessoas com quem não queria estar, fui a lugares que jamais teria ido, me coloquei em diversas situações de risco, me envolvi com pessoas que jamais olharia. Cheguei a agredir uma pessoa fisicamente – logo eu, uma pessoa 100% contra violência. Isso foi meu “fundo do poço”. Teve também uma situação gravíssima quando fiquei com um cara na Lapa, apresentado por um amigo, uma pessoa com quem eu jamais teria ficado se estivesse sóbria, porque não me atraía em nada, nem física, nem sexualmente. A noite foi muito louca, passei por uma favela com ele, fui parar num motel, e ele teve um surto, surto, surto mesmo, e começou a me dar socos e tapas, achando que eu era transexual. Achei que eu ia morrer. Liguei para uma amiga, que foi me buscar. Fui ao IML fazer corpo de delito e tudo mais. Até escrevi uma cena sobre esse cara numa peça.
E a vida sem álcool?
Me coloquei em risco milhares de vezes e sou muito grata por estar viva, por ter tido a oportunidade de conhecer essa doença, de saber que sou portadora, de receber o tratamento adequado, de me reformular e ter tido a oportunidade de me tornar uma outra pessoa numa mesma vida. Com isso, resgatei a relação com a minha mãe, que era muito complicada: pudemos nos perdoar. Essa é uma doença que mata, não só pelo uso abusivo mas também pela inabilidade com as emoções. Muita gente não consegue porque só tira o álcool, mas não trata da doença, as emoções e não fazem a reformulação interna, que é necessária e continua no lugar da autopiedade, ingratidão, ressentimento, raiva… Se você reformular sua maneira de lidar com a vida e usar ferramentas, você sai desse lugar com autoconhecimento. É como se você se tornasse uma nova pessoa, mas isso não é fácil. É preciso trabalhar e ter vontade.
Estar sóbria é…
Ganhar a vida porque talvez, antes disso, você pode nem ter sabido o que era viver e ser feliz. Então é um trabalho que vale muito a pena. Não conheço uma única pessoa que trabalhou para fazer essa reformulação e se arrependeu ou falou que antes era melhor. Todos dizem que, graças a Deus, são abençoados por ter tido a cura na vida.
Alguma dica para quem está tentando parar de beber?
Existem sugestões, uma delas é evitar pessoas, lugares e hábitos de uma vida alcoólica ativa. Como vai parar de beber frequentando um bar? No começo, existe um afastamento dos amigos de copo, mas quem é seu amigo mesmo conhece sua relação destrutiva com o álcool e vai entender. O engraçado é que as pessoas descobrem coisas novas, hobbies antigos: pedalar, fazer trilha, começam a frequentar mais teatro, vão dançar, fazer ioga.
E por que compartilhar sua história?
Quando uma pessoa vê você se expondo, toma coragem e acaba buscando ajuda. Não sou corajosa, porque coragem é quando você tem medo de fazer uma coisa e faz apesar do medo, e eu não tenho medo. A intenção é que, através da Karina e dos depoimentos, as pessoas entendam a doença, mostrem a elas que não tem cura, mas tem tratamento, e é possível ter uma vida digna, feliz e harmoniosa sem o álcool.