A carioca Ana Botafogo, nome destacado da dança clássica brasileira, comemora 45 anos de carreira em 2021, dos quais 40 como primeira bailarina do Theatro Municipal. Para contar essa história, ela vai ganhar um dos melhores presentes: um livro. Muito mais que uma publicação comum, “Ana Botafogo: palco e vida” tem mais de 900 páginas e foi amorosamente preparado pelo seu pai, o médico Ernani Ernesto Fonseca, de 95 anos, com lançamento dia 1º de setembro, obviamente no Municipal. Trata-se de uma parceria com o Instituto Bees of Love, de Georgia Buffara, e parte da venda vai para a reforma da Maternidade do Hospital Municipal Miguel Couto — a profissão de Ernani influenciou na escolha do projeto.
Baseada em lembranças, registros da imprensa e numa minuciosa pesquisa do autor, que levou 15 anos, a publicação vai do berço aos palcos, reconstruindo momentos marcantes, como o protagonismo em espetáculos, como “O lago dos cisnes”, “Giselle”, “Coppélia” e “O quebra-nozes”. No prefácio, ele diz: “Proponho contar a história que ainda não foi contada e que, presumivelmente, jamais seria, pois, em grande parte, pertence ao acervo exclusivo de minhas recordações e de minha vivência durante os anos em que eu e sua mãe a acompanhamos quase dia a dia.”
A foto da capa já atesta a devoção à dança, desde o primeiro tutu (a saia das bailarinas) ainda criança. “Meu pai não buscou informações só sobre mim, mas sobre tudo o que aconteceu de mais importante na dança no Rio, no Brasil e no Theatro Municipal”, diz Ana.
Como é ter um livro escrito pelo próprio pai?
O primeiro sentimento, quando surgiu a ideia, foi de pensar mesmo na memória, no resgate. No entanto teve um primeiro sentimento de quase impossibilidade porque eu já tinha feito muita coisa na vida, mas meu pai foi muito determinado. Quando ele começou, eu estava no auge da carreira, então, ele não só fez uma pesquisa do que já tinha passado, como também acompanhou aos poucos o que eu ia fazendo e registrava cada crítica, cada matéria, tanto no Municipal como nas turnês pelo Brasil e no exterior. Tenho um sentimento de alegria, de amor, carinho por meu pai ter se dedicado tanto. Ele trabalhou até quase 90 anos, quando se aposentou. Claro que toda a parte pessoal antes de ser bailarina profissional tem todo um olhar pessoal do meu pai. Mas é o registro da vida de uma artista brasileira, com certeza.
E como é ter um pai, aos 95 anos, lúcido e ativo? Alguma curiosidade, momentos engraçados?
Pouco ajudei nesse projeto porque eu trabalhava muito, ensaiava muito, dançava muito e só via quando ele já ia guardando todos os detalhes. Foram muitos momentos engraçados e de recordação porque, muitas vezes, ele descobria fatos antigos que eu não lembrava. A primeira vez que ele me apresentou o livro todo, meu Deus, era enorme! A gente dizia: “Como isso vai acontecer? Nunca vai dar certo!” Mas foi feito de uma maneira muito interessante porque tem toda uma parte pessoal e de observação dele, e depois, eu já bailarina profissional. Ele ainda fez uma pesquisa sobre maestros, companhias, parceiros brasileiros e estrangeiros — eu não tinha mais ideia de quantos havia dançado.
E como surgiu a parceria com o Bees?
Usar a minha arte para doação é sempre muito bom. Conheci a Bees há dois anos, dentro do próprio Municipal. Depois surgiu a ideia de estarmos juntos nessa parceria — eles ajudando a fazer a edição desse livro. A Georgia Buffara (presidente e fundadora) achou importante o resgate da vida de uma artista brasileira. Não tenho um projeto social meu, mas sempre estive próxima a outros projetos, usando sempre a minha arte pela educação e cultura.
Você acha que a dança e a música clássica ainda são elitizadas no País?
Isso melhorou muito nesses 40 anos, e eu me esforcei bastante para popularizar a dança. No entanto, ainda há, sim, um caminho a percorrer. Eu digo que os jovens de hoje têm que lutar para continuar essa popularização, mas nós temos já um público muito fiel. O que mais queremos é trazer as pessoas, por exemplo, pra dentro do Municipal, que é o local adequado para se ver uma melhor produção.
Quais as possibilidades de carreira profissional dos bailarinos aqui?
Temos grandes companhias no Brasil. Claro que ainda é muito aquém do que é necessário para a quantidade de bailarinos que se formam a cada ano. Mas, infelizmente, com a pandemia, a possibilidade de uma carreira de bailarino agora está bastante difícil. Isso porque nas companhias, que já contratavam pouco, ou que eram pequenas, sobretudo as contemporâneas, que são menores, hoje em dia não há contratação. As companhias ainda estão muito limitadas aos seus espetáculos presenciais.
Nessas décadas, algo mudou com a técnica do balé, sapatilhas, métodos? Ainda existe preconceito na participação masculina na dança clássica?
Deixamos de ter ídolos pontuais para termos muitos artistas importantes e reconhecidos mundialmente. As redes sociais ajudaram muito a propagar a dança e a arte no mundo. A técnica mudou, sim, aprimorou-se, os físicos mudaram, a maneira de se preparar, cada vez mais, com atletas, veio mudando em 40 anos. O que a gente sempre se preocupa é que a técnica se aprimore, mas a arte da interpretação e da emoção não seja esquecida. A participação masculina é cada vez maior. Aqui, no Brasil, temos agora, a escola Bolshoi, lá em Joinville (SC). Mas ainda existe, sim, preconceito, ainda temos muito mais meninas do que meninos. Às vezes, os bailarinos não ficam no Brasil por falta de trabalho, porém temos muitos homens em posições de grande destaque, de solistas ou primeiros bailarinos em companhias internacionais.
Você atravessou direções, prefeituras, governos estando no Municipal. Qual foi o momento mais difícil do palco mais famoso do Rio?
eve altos e baixos, mas o pior momento foi há uns 4 ou 5 anos, quando o funcionalismo público do estado do Rio ficou sem salário e nós, também. Uma geração de bailarinos sofreu muito por causa disso e, claro, o Municipal sofreu como um todo. Pra mim, essa foi a pior crise. E, claro, agora tudo foi agravado com a pandemia. Quando estávamos querendo nos recuperar de tudo isso, começando a querer fazer uma grande produção, veio a pandemia, e o teatro continua fechado até hoje.
Um bailarino não se aposenta, né? Embora o tenha feito oficialmente em 2015… Como é estar do outro lado do palco? Ainda pratica?
Bailarino se aposenta, sim. A carreira da bailarina não é uma carreira muito longa, e eu tive sorte. Fiz minha despedida dos grandes palcos e clássicos em 2012. Mas continuei dançando até 2015, em pequenos balés e como convidada. Hoje, já não danço mais; minha atuação é nos bastidores, em workshops, dando palestras. Eu tenho uma escola, tenho uma loja de artigos de balé – a Ana Botafogo Maison -, a escola Âmbar, em Niterói. E, claro, me mantenho em forma, fazendo exercício. Até o último dia antes da pandemia eu fiz uma aula presencial com o corpo de baile do Municipal.
Você é carioca, com isso, o que mais ama e odeia na cidade?
Sim, sou carioca da gema. O que eu mais adoro no Rio é a natureza, a luminosidade e o savoir-faire do carioca. O que eu mais odeio é a violência, com certeza.
Qual o seu sonho para o balé brasileiro? E seus próximos passos?
Bom, o sonho é que o balé volte a ser atuante. Meus planos futuros, depois do livro, são a dedicação à minha escola de dança, meus workshops e palestras presencial ou on-line, justamente para estimular os jovens bailarinos. Em época de pandemia, eu tenho feito isso muito, principalmente aqueles que ficaram em estudos remotos. Dar o estímulo e também explicar da volta presencial e do contato com o professor. Porque quem trabalha com o físico precisa ter uma orientação pessoal do professo; só assim, pode progredir.