O que as Olimpíadas têm mostrado ao mundo sobre o comportamento no pós-pandemia? Segundo Maria Francisca Mauro, mestre em Psiquiatria pela UFRJ, uma das “descobertas” do século é que o ser humano é humano e não super-herói.
Um dos exemplos de fragilidade emocional que muitos compartilham foi a desistência da americana Simone Biles, de 24 anos, de disputar a prova da ginástica artística, justificando a atitude como uma forma de se preservar mentalmente, porque estava sentindo-se pressionada e insegura. “Assim que eu piso no tablado, sou só eu e a minha cabeça lidando com demônios. Tenho que fazer o que é certo para mim, e não prejudicar minha saúde mental e meu bem-estar. Há vida além da ginástica”, disse a atleta.
Mas o que a pressão sofrida por um atleta de alto rendimento teria a ver com a pandemia? Tudo. Segundo Francisca, as pessoas estão querendo viver e cuidar da saúde mental a todo custo. Para muitos, a pandemia já é passado. Para a psiquiatra, alguns ainda vivem uma onda de desânimo, enquanto outros buscam alguma satisfação, mesmo que seja passageira, e ainda há os que se esforçam para “levantar o astral”, mas deparam com um lugar duro onde a falta de vontade impera.
Na conversa com a coluna, Francisca fala sobre como a pandemia pode ter influenciado na saúde emocional das pessoas.
O que as Olimpíadas podem nos dizer sobre o pós-pandemia?
Ouvindo o depoimento dos atletas, que tiveram dificuldade em treinar no ano passado, sobre as incertezas de uma Olimpíada, quando ainda não se sabia nada sobre o coronavírus, como agir? O mundo parou e, com ele, os atletas tiveram que treinar de forma improvisada, como o nadador medalhista de bronze brasileiro (o gaúcho Fernando Scheffer), que estava treinando num açude na chácara de um amigo. Isso aconteceu mundo afora, com todas as pessoas, em seus mundos particulares. No caso de atletas de alto rendimento, como treinar em casa? Adaptar-se a isso tudo não é fácil porque todo mundo é humano. Imagine do que a Simone Biles já abdicou — coisas cotidianas, como festas, encontros com amigos, relacionamentos — para chegar até ali. Esses ambientes de alta performance são muito rígidos. Talvez agora ela queira ocupar o pódio da própria vida. A pandemia pode ter provocado essa reflexão.
Observando de longe, acredita que os atletas foram afetados pela pandemia?
Tenho notado, em geral, que as pessoas ficaram mais humanas. Quanto aos atletas, para conseguir resultados, eles têm que ter uma obstinação; não é uma vida padrão, são outros limites e escolhas. Com a pandemia, ficaram angustiados, ansiosos e passaram por momentos de incerteza. Imagina o desgaste emocional? Obviamente que todos têm acompanhamento psicológico, mas nada os preparou para isso. Um esportista de alto rendimento já tem uma emoção por conta da natureza do trabalho, e estar numa Olimpíada é ainda maior. Com certeza, isso os afetou plenamente.
E teve a falta de confraternização, aquele calor de bastidor…
Como vimos no Rio, em 2016, tivemos oportunidade de experimentar o que é uma Olimpíada, a alegria, o estado de espírito; agora imagina não ter plateia, não poder abraçar um familiar, vibrar junto, não ter torcida… Comparando em pequenas proporções, é como dar uma aula virtual e não presencial. Quando você sai de um congresso, tem o momento de conversa, uma troca e, num cenário virtual, você não tem a possibilidade de troca.
De modo geral, quais foram os maiores danos emocionais?
A maior procura no meu consultório (virtual e agora presencial) foi de pessoas com problemas com o peso, o desconforto com a imagem, tanto de gente que engordou como emagreceu. Com a pressão, as pessoas começaram a perder o controle sobre a alimentação, adolescentes com anorexia e outros que ganharam peso, já que foram impedidos de viajar, ir a festas. O jeito foi canalizar na comida. Outro abuso foi o de bebidas alcóolicas, o segundo campeão — quem não bebia muito e passou a beber porque aliviava o estresse; aquela taça do fim do dia virou habitual. E veio a depressão porque as pessoas perderam todos os tipos de estímulo e ficaram mais apáticas, sem energia, sem poder fazer as coisas que davam um levante; algumas perderam o prazer sexual, outras fizeram sexo em excesso. Mas temos que saber diferenciar sofrimento de doença psiquiátrica.
Mas o quadro emocional frágil pode trazer danos permanentes?
Dependendo da predisposição de cada indivíduo, a pressão emocional pode desencadear quadros de transtornos psiquiátricos. Já do outro lado, retomando o assunto Simone Biles, essa a pandemia trouxe à tona a humanidade das pessoas, de que não somos robôs ou super-heróis — somos falíveis e frágeis. Por isso é que alguns, confrontando-se com a fragilidade, ficam desesperados e aí procuram refúgio na comida, na bebida, no sexo, nas compras compulsivas, e por aí vai.
Qual o caminho para a retomada da normalidade?
É ler, informar-se, procurar ajustar a qualidade de vida sem excessos. Para os que estão com questões existenciais, é buscar ajuda na terapia com psicólogos e psicanalistas. Já pessoas com quadros graves de depressão ou transtorno de ansiedade precisam procurar um psiquiatra.
Acredita que as pessoas vão sair melhor de tudo isso?
Isso é uma ilusão. Num primeiro momento, estava todo mundo gentil, as pessoas gratas por poderem circular pelas ruas, todo mundo bonzinho; agora, só faltam nos atropelar na rua. Quem era mal-educado continua assim, e quem é grato pela vida continua sendo grato. Quando anunciaram a vacina, o povo estava animado, gritando “viva a ciência”, “gratidão”. Bastou chegar um segundo tipo de vacina, e todo mundo virou sommelier. Isso é da natureza humana — se a pessoa tiver opções, ela vai escolher. Uns pensam no coletivo; já outros, que se dane o mundo. Algumas pessoas podem ter se confrontado com algumas questões e mudaram o estilo de vida, tomaram decisões de casar, separar, teve de tudo. É uma situação catalisadora, que acelerou processos.
E o que pensa das festas clandestinas, das fotos de viagem nas redes sociais etc? O que vem por aí?
A pandemia que lute, porque as pessoas já estão saindo e se abraçando há muito tempo. O que eu observo, de acordo com alguns cenários sociais, é que, de acordo com a intimidade, elas se abraçam e beijam e, num mais formal, cumprem os protocolos de cuidado. Não adianta julgar, pois cada um tem um limite emocional. Algumas famílias perderam muitos parentes porque alguns não suportaram ficar afastados, e contaminou todo mundo. Por outro lado, as lojas estão vendendo como nunca, as pessoas nunca reformaram tanto a casa e estão afoitas por viver; então resolvem tudo que antes deixavam passar e correm pro abraço. O futuro é as pessoas cuidarem da saúde mental, das coisas que realmente importam. Um aspecto da pandemia é que tivemos a certeza da morte – todo mundo conhece alguém que perdeu alguém. A pandemia trouxe a finitude, o desejo por viver, os excessos; as pessoas querem tudo na hora, porque ninguém sabe como vai estar daqui a pouco.
E o pior da pandemia?
As perdas, a ausência de pessoas amadas, porque estamos numa guerra e num luto coletivo que precisa ser elaborado.