Quando tudo começou, nem o mais pessimista dos brasileiros teria a desfaçatez de imaginar que chegaríamos aonde chegamos. Tão fundo e tão triste. Por força do ofício, acompanho a trajetória da Covid-19 desde as primeiras notícias surgidas em Wuhan, quando nem esse nome existia, passando pelo caso daquele navio de cruzeiro ancorado em um porto do Japão, as entrevistas coletivas diárias da Organização Mundial da Saúde, dali para os relatos assustadores vindos da Europa, até o vírus chegar às Américas e, nelas, ao Brasil, ao Rio, a circular pertinho de casa, entre parentes e amigos, a ceifar vidas e levar anônimos e celebridades e nos privar de Aldir Blanc, Agnaldo Timóteo, Paulo Gustavo e mais meio milhão de brasileiros.
Começava, naquele início de 2020, um esforço múltiplo de adaptação e resiliência para acomodar a rotina pessoal e da família aos novos e incertos tempos e, do lado profissional, para tentar entender, traduzir e ajudar a explicar o que estava acontecendo. Para completar, o País vivia, como ainda vive, os efeitos dolorosos das ações e inações de um governo descolado da realidade. Para um jornalista mais voltado às questões internacionais, ainda tinha mais uma tarefa, já que, não raro, precisei responder a perguntas de colegas estrangeiros, curiosos e preocupados com o que acontecia por aqui.
Como se não bastasse isso tudo, tive, como tivemos todos, que buscar caminhos próprios para manter a saúde (física e mental) diante de uma realidade que, em quase tudo, superava a mais tresloucada ficção.
Para a saúde física, caminhadas que me fizeram redescobrir o Parque da Cidade, que continua lindo, e personal trainer três vezes por semana – primeiro online, como as aulas de tantos meninos e meninas e as celebrações da família e dos amigos; depois, em um espaço arejado, e sempre de máscara.
A saúde mental, essa foi mais difícil de manter e ainda é talvez o grande desafio destes tempos. A presença da mulher amada e dos filhos sempre ajuda, mas as preocupações alimentam insônias, que realimentam preocupações, e por aí fomos. Não esmoreci; nem tive tempo pra isso. Além de trabalhar dobrado, com direito a uma intensa eleição presidencial dos Estados Unidos no meio de toda a confusão, procurei valorizar ou, para usar um verbo da moda, ressignificar os momentos de melancolia e, com isso, tranquilizar a cabeça.
Ajudei a fazer a versão brasileira de uma música francesa do final da década de 1960, “La tendresse”, que, como o nome diz, enaltece a ternura e sua importância em horas difíceis. O resultado final, que foi gravado e contou com a participação de muita gente boa, ficou lindo. Escrevi o prefácio de uma biografia de Joe Biden, aproveitando o grande volume de informações acumulado sobre o personagem na cobertura da campanha e da votação.
Das madrugadas insones da pandemia, nasceu um livro, que se configurou como minha estreia literária propriamente dita, com base nas anotações feitas em viagens de trabalho, somadas a lembranças pessoais, informações variadas, curiosas e surpreendentes, recolhidas em países tão distantes e diversos quanto a Rússia, Israel, a China, o Egito, a Suíça, a Bósnia, os Estados Unidos e o Vietnã, que se misturam a sabores e cheiros do Recife da minha família e às referências do Rio, minha cidade da vida. Ligando os pontos, conexões insuspeitas, que só confirmam que o mundo é um só, redondo e dá voltas.
Marcelo Lins tem 53 anos (adora falar a idade), é jornalista na GloboNews, onde integra o time de comentaristas do Estúdio I. Apresenta o GloboNews Internacional, participa de coberturas especiais e também faz traduções simultâneas. É casado com Clarissa, pai de Antônio e Joaquim e coleciona rinocerontes. Já trabalhou no antigo CEDOC da TV Globo, no GNT, na BBC, em Londres, e foi redator do guia “Rio botequim”. Está lançando “Um longe perto — Histórias de um jornalista nesse mundo que dá voltas” (editora Agir), seu livro de estreia.