Franz Kafka (1883-1924), o escritor tcheco, costumava se referir a sua aparência de maneira depreciativa. Eram comuns, em seus diários, adjetivos como “miserável” e “desprezível”, além de “ombros caídos”, “braços desajeitados” ou “postura encurvada”. Certa vez, escreveu: “Tinha pavor de espelhos porque eles refletiam uma feiura inescapável.” Se vivo estivesse, Kafka faria uma harmonização facial? Botox? Provavelmente, sim.
O número de cirurgias plásticas aumentou durante a pandemia? Depende. De março a maio de 2020, houve uma diminuição já que a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) recomendou aos associados a suspensão de cirurgias eletivas.
No caso do cirurgião plástico carioca Sergio Romay (ex-aluno de Pitanguy), com consultório em Botafogo, depois da escassez lá no início da pandemia, ele voltou a atender e viu o movimento crescer, com uma nova preocupação principal: o rosto, mas com a maioria dos pacientes procurando métodos menos invasivos, como preenchimentos e botox.
A tendência é mundial e, de acordo com a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (American Society of Plastic Surgeons), 55% dos cirurgiões daquele país relataram que as injeções de botox foram o tratamento mais procurado durante o isolamento, seguido por 40% de aumento dos seios. Segundo o Google Brasil, o termo “rinoplastia” (plástica no nariz), por exemplo, apresentou um crescimento de mais de 4.800% nas ferramentas de busca entre março e junho de 2020.
Qual foi a maior mudança comportamental que você observou na pandemia, em cirurgias ou procedimentos?
As pessoas estão muito focadas na face, porque estão em tudo que é telinha: no celular, computador, em reuniões no Zoom, em vídeos, lives. Com o isolamento social, o corpo não está tão aparente, que era a preocupação principal do carioca, que nutre um culto ao físico muito grande, diferente do paulista; isso, porém, mudou muito.
O que elas querem?
Cirurgia dos olhos (blefaroplastia, na pálpebra), a rinoplastia (nariz) e a aplicação de toxina botulínica (botox), para melhorar as rugas de expressão. Posso dizer que, antes, a procura por preenchimentos e botox no meu consultório era de 5%, mas cresceu em 30% do ano passado pra cá e igualou às de aumento de seios e lipo, que eram o carro-chefe da cirurgia plástica. Com a quarentena, as pessoas passaram a se olhar mais e, dependendo do ângulo, da distância e da luz, ela começa a enxergar defeitos que nem existem. E, por estarem em casa, trabalhando em home office, tiveram mais tempo para recuperação pós-operatória. Outra coisa é que as pessoas não podiam viajar, então acabaram gastando menos com viagens, roupas e restaurantes e focaram naquela mudança que tanto queriam.
Percebe o surgimento de alguma patologia?
Sim, e tem até nome: Dismorfia do Snapchat ou Transtorno Dismórfico Corporal (TDC). É quando a pessoa identifica defeitos ou falhas em sua aparência, o que, para os outros, muitas vezes, é imperceptível ou nem sequer considerado falha. É o desejo de se parecer, na realidade, com sua imagem depois de ser retocada por filtros e outras edições. Os filtros nos aplicativos fizeram com que se sentissem mais bonitas virtualmente, e virou febre. Esse transtorno mental, como tantos outros, pode levar à depressão e a pensamentos ou comportamentos suicidas. Isso causa sofrimento e ansiedade, afeta diversos aspectos tanto da vida pessoal como na profissional. Um recente estudo da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins descobriu que cerca de 13% dos pacientes que pedem cirurgia estética sofrem de TDC.
O que acha da “Harmonização Facial”?
Todos chegam ao consultório pedindo o mesmo nariz, a mesma maçã do rosto, os mesmos lábios de Angelina Jolie, o mesmo queixo, a mesma mandíbula quadrada, e por aí vai. O que está acontecendo é que essas pessoas estão ficando caricatas e perdendo os traços — a tal da ‘Harmonização Facial’, um termo que não gosto de usar porque ficou muito banalizado. Inclusive, os exageros acabaram levando à “Desarmonização Facial” para tentar reverter os resultados das intervenções que não tiveram um bom resultado, como o caso do cantor Lucas Lucco. Daqui a pouco, a própria pessoa não vai se reconhecer. Já assistiu àquele filme “A pele que habito”?, com Antonio Banderas, sobre a relação nada sadia de um cirurgião plástico e sua paciente?… É exatamente isso. Não há nenhum problema em buscar procedimentos estéticos para melhorar imperfeições ou rejuvenescer, mas existem alguns limites. Eu prefiro melhorar o contorno facial do paciente, deixando a face mais leve, dando assim o ar de jovialidade, e também acertar pequenas imperfeições sem tirar as características. Podemos chegar a um bom resultado usando a toxina botulínica, o preenchimento com ácido hialurônico, entre outros. E, em nível cirúrgico, temos o preenchimento com gordura do próprio paciente (Lipoenxertia), a rinoplastia, a lipoaspiração de papada, entre outros.
Essa febre deu brecha para muitos charlatões…
Sim. Inclusive usam as redes sociais prometendo tratamentos milagrosos sem nenhum tipo de formação adequada. Hoje, infelizmente, também temos a invasão de médicos não especialistas e de outros profissionais não médicos fazendo esses procedimentos, cuja consequência são muitas sequelas.
Já existe uma procura para reparação? Já viu muita coisa bizarra?
Não dou nem cinco anos para esse ‘boom’, e existem sequelas que são irreversíveis. Já vi muita coisa: paciente sem metade do lábio porque fez preenchimento com profissional X e necrosou. Já tive outro sem parte do nariz, com o olho bem caído, e até cega de um olho porque o preenchimento pegou na artéria oftálmica. Uma menina que queria colocar 1 litro em cada mama, sem ter tórax para aguentar isso tudo; ela sumiu e nunca mais a vi. Peguei uma paciente para tentar tirar silicone industrial na bunda e desceu para a coxa. Quando está no subcutâneo ok, mas quando o silicone fica entremeado na musculatura, não tem como tirar. E tem outra coisa: as pessoas procuram um médico pelo número de seguidores nas redes sociais, mas isso não é chancela para ser um bom profissional. A pessoa tem que se informar, procurar os nomes na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, ir ao site do Conselho Regional. As pessoas têm que ter consciência, e os conselhos fazerem mais fiscalização.
Alguma dica para evitar furadas?
Procure saber se o seu médico realmente é cirurgião plástico. Entre no site da SBCP ou do CRM da sua cidade e veja se realmente ele é especialista. Não se iluda com preços muito abaixo do mercado — número alto de seguidores em redes sociais não é chancela para um bom profissional. Procure sempre saber com outras pessoas que já fizeram procedimentos e cirurgias com aquele profissional. Vi um programa sobre um homem que fez mais de 30 cirurgias para ficar igual ao boneco Ken, marido da Barbie. O profissional não está errado, mas eu não faria: isso é um transtorno psicológico. Por isso, trabalho com uma equipe multidisciplinar que tem psicólogo, nutricionista etc. Antigamente, as pessoas faziam facelifiting e mais nada; hoje em dia, as meninas querem fazer preenchimento em tudo que é canto.