Minha vida foi pautada por vícios lícitos: cigarro e álcool. Sobre o primeiro, acabo de escrever a “Cartilha Oxigênio Pleno” para quem quiser, no site. Não vou falar, aqui, de todos os males que o cigarro traz. Acho que todos que querem parar conhecem muito bem; só fingem que, pra eles, não faz tanto mal assim. Com esse pensamento, fui levando como fumante e me dei mal — desde os 9 anos, cigarrinhos de bambu, de palha de milho, roubado do vovô e da mamãe. Aos 16, já não podia ficar sem. Fumei bebendo, sem beber, no cinema, em velório, na ponte aérea (uma delícia), grávida, resfriada, tossindo, enfim, vício terrível. Fumei por mais de 40 anos e não me via sem o cigarrinho, dois maços por dia.
Passo a passo, fiz um enfisema, acreditando que fumar não me faria tão mal assim — puro autoengano. Minha sorte foi ter descoberto a tempo de me tratar, e continuarei a me tratar enquanto viver. Estamos numa pandemia, em prisão domiciliar, há quase um ano, sem ver netos, que, daqui a pouco, nem os reconhecerei, nem eles, a mim. Não sou do grupo de risco só pela idade (tenho 75), mas agravado pela DPOC — Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (vulgarmente chamada de enfisema), causada pelo cigarro. Fumar não é, simplesmente, um hábito; pensar assim deixa os fumantes despreparados para as alterações fisiológicas e psicológicas que podem ocorrer durante o processo de parar com o tabaco. Na ação da decisão de parar, está à vontade. Acredite! Difícil é se decidir. Depois desse passo, o caminho se abre.
Consegui com um programa que eu mesma criei, baseado em tudo que venho aprendendo, exercitando e com uma verdadeira vontade. E manter isso nas dores maiores do coração, doenças, perdas financeiras, materiais, covid, é muito difícil, mas é um sentimento de responsabilidade de me manter limpa, de ser útil, porque, senão, como posso ajudar alguém?
Para falar sobre o álcool, cito “Drunk — mais uma rodada”, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional 2021. A história me causou um grande impacto. Achei perfeito o modo como abordaram um assunto tão cheio de polêmicas. Não tenho conhecimento de oferecerem bebida para alunos vencerem o medo, mas o desenrolar da doença é perfeito. Não que todos vão se tornar dependentes. Ali dá pra perceber, claramente, como já havia acontecido comigo, que nem por todo o amor do mundo, o alcoolismo é vencido; ele é mais forte, inacreditável e muito triste. E só depende da pessoa.
Tinha 20 e poucos anos e não sabia que era alcoólica (‘alcoólatra’ não é mais usado por significar adoradores de álcool), mas que gostava de beber alguns destilados mais do que muitos amigos. Não me preocupava muito, até meu primeiro marido começar a reclamar de tudo. Mesmo assim, nunca perdi o trabalho ou as atividades com meus dois filhos e nunca fui chamada de bêbada nessa época.
Morava em São Paulo, era bem relacionada, frequentava lugares bacanas, era bonita. Meu marido era bem-sucedido e corria de carro como hobby, ambiente pouco propício para bebida em grandes volumes. Minha primeira filha morreu depois de cinco dias de nascer, seguido de um período de sofrimento sem consolo. Vieram mais dois filhos. Com o tempo, o casamento foi minguando, ficava mais sozinha porque as viagens dele para correr de carro eram mais frequentes; enfim, éramos muito jovens. Casei-me com 19 e ele, com 21. Nem ele nem eu vivemos experiências suficientes para ganhar maturidade. Comecei a beber uísque todas as noites. A solidão ao beber se tornava maior e, com ela, a sensação de abandono, rejeição — sou feia, sou gorda, ninguém me ama, ninguém me quer e a grande vítima aparecia. Até largar, sem mais nem menos, o trabalho que fazia brilhantemente de instrumentadora cirúrgica, sumir sem dar satisfação, e a baixa estima se instalou de tal forma que achei melhor acabar com a vida, já que eu era uma merda mesmo e não tinha jeito.
Na verdade, eu não queria morrer. Queria chamar a atenção do meu marido para que ele sentisse pena de mim, me acolhesse nos braços, falasse que estava tudo bem e dissesse “eu te amo”. Nada disso aconteceu. Dei trabalho, dei vexame, fiquei envergonhada. Esperava apenas que meus filhos não percebessem. E, no meio da confusão mental, chamei por mamãe, mas lembrei que mamãe já não estava mais entre nós.
Cada vez mais insana, mudei-me para o Rio, crente que aqui eu esqueceria a minha vida, os meus vexames, o meu ex-marido e meu descontrole com a bebida. Dinheiro não me faltava. Aluguei um belo apartamento e vim com meus filhos, dois cachorros, duas empregadas e um coelho: a famosa “fuga geográfica”. Conheci meu marido atual, me agarrei a ele como minha salvação, melhorei um pouco, mas logo fui piorando no abuso do dia a dia. Não havia promessas que conseguissem manter — o vício é muito maior que o amor aos filhos, aos pais, ao marido.
As consequências foram terríveis. Meus filhos foram traumatizados por participarem de brigas horríveis, não conseguia trabalhar direito como instrumentadora, larguei, abandonei minha família e meus amigos. Mas, ao mesmo tempo, me divertia muito. Fiz viagens gostosas, apesar de muito loucas… Continuei alegre. Queria beber como todo mundo, parar quando batesse a tonteira, ter vontade de fazer esporte, mas a preguiça e a procrastinação eram maiores.
Depois de muita briga, de ser chamada de ‘bêbada safada’ e outros adjetivos piores, chegou um tempo em que todo mundo foi embora: meus filhos e marido. Sobramos eu e dois cachorros numa casa no alto da Lagoa, pertinho do céu.
Pelas mãos do Espírito Santo, de algum anjo ou de Deus, acordei sem ressaca e, como que empurrada, fui parar no Alcoólicos Anônimos de Copacabana, onde fui recebida com amor, generosidade, sem críticas ou julgamentos. Disseram-me a frase mais mágica do mundo: “Você não é uma sem-vergonha, sem caráter, fraca. Você tem uma doença chamada alcoolismo!” É uma doença lenta, progressiva e de final fatal. É incurável, mas você pode dominá-la e viver feliz só por hoje. Amanhã é outro dia!
Isso aconteceu em 1986. A forma que consegui para me manter limpa foi estudando os “Doze Passos de Alcoólicos Anônimos”, um conjunto de princípios espirituais como um modo de vida. Pesquisei e procurei me conhecer mais a fundo, seguindo um caminho de espiritualidade e procurando ser útil às pessoas.
Stella Rebecchi nasceu em São Paulo, e mudou-se para Rio em 1975. Tem formação em Terapia Corporal Transomática pelo Instituto Brasileiro de Biossíntese e em Aconselhamento em Dependência Química, inclusive tabaco. É Rigoloterapeuta® pela L’Ecole Internationale du Rire et du Bonheur, na França, e palestrante sobre compulsões na área da saúde. É autora do livro de poesias “Terra Roxa” (Edições Trote/1985 — esgotado) e de “Fundo do Céu — do fundo do poço à conquista da sobriedade” (Editora Jaguatirica/2014), seu primeiro romance.