26 de fevereiro de 2020 — primeiro caso de Covid-19 confirmado no Brasil.
Acordei, tomei banho, o café da manhã, escovei os dentes, li algumas notícias – não necessariamente nessa ordem. Saí para trabalhar. Calor, trânsito, gente indo e vindo. Tudo nos conformes, apesar de tudo. Covid? Tava lá numa notinha de algum jornal: veio da China, mas fez escala na Itália, antes de pousar no Galeão. Não deve ser nada de mais. Vou dormir.
17 de março de 2020 — primeiro óbito confirmado em decorrência do novo Coronavírus.
Acordei, tomei banho, tomei café, escovei os dentes, li muitas notícias sobre a pandemia em potencial — tudo fora de ordem. Sair para trabalhar? Sei não, melhor fazer home office hoje. Sars-CoV-2? Cresceu, ganhou nome científico, roubou o meu café, deu holofotes pro Ministro Mandetta — que recomendou testagens. Medida suspende eventos, restringe o funcionamento de bares e restaurantes. O Presidente disse que não há motivo para alarde, que outras gripes mataram mais que essa… E seguiu dizendo que era tudo histeria. Sei não. Vou dormir. Sonho com aquele chope com os amigos – que parece que vai ficar pra semana que vem, ou pro mês que vem.
21 de março de 2020 — 18 mortos.
Acordei, tomei água com açúcar, escovei os dentes, inteirei-me sobre a pandemia, que ocupava 101% dos jornais. Trabalhei de casa. O Presidente entra em cena para roubar a cena e acaba roubando a paciência… Isso daí? Questão de dias… Tem que acabar. Riso debochado — dele.
24 de março de 2020 — 47 mortos, 1965 infectados.
Acordei, tomei café com vodka, passei álcool em gel nas mãos. Trabalhei em casa. Home office is the new “Orange is the New Black”. Centenas ou milhares de bares e restaurantes fechados. Milhões esperando algum movimento no Congresso; 26 estados com casos confirmados. Uma MP aqui, uma “gripezinha” ali, muitos desmandos. Zero paciência. Presidente desautoriza medidas do Ministro da Saúde, critica a imprensa, fala mal da grama do vizinho, debocha do corte de cabelo de alguém que passava na hora e saúda Ustra do alto do seu histórico de atleta. Melhor dormir.
02 de abril de 2020 — 247 pessoas mortas pela doença.
Dormindo, tomei vodka pura, banho de álcool gel, botei a máscara, vesti o pijama. Trabalhei de casa, com medo de ser demitido. No controle, descontrolados e negacionistas. Tudo na mais perfeita desordem. Mas, segundo o presidente, tenho poucas chances de me contaminar já que sou brasileiro e nado até em esgoto. Vou dormir com meus anticorpos. Um viva para a falta de saneamento básico.
10 de abril de 2020 — o número de mortos passa de 1.000.
Acordei. Domi. Acordei de novo. Coloquei a máscara, vesti um avental, calcei luvas e sapatilhas, bebi álcool gel, fiz o RT-PCR, sorologia IgG, IgM… Botei a boca na janela: VtnC FdP. Vou dormir que ganho mais.
16 de abril de 2020 — 1.952 mortos. 30.891 infectados.
Acordei, pisquei… Um mês de pandemia. Sem bolo, sem café, sem banho, sem ministro da Saúde. Sai Mandetta, exonerado. Ligo a TV: “Ciúmes, intrigas e muita confusão na sua Sessão da Tarde”. Garçons, cozinheiros, músicos, produtores de eventos, cabeleireiros, manicures, faxineiros, dentistas, vendedores e operários sem emprego. O Presidente, sempre bem-humorado, diz que não é coveiro. Ouço gritos pela janela. Hora de dormir.
05 de maio de 2020 — mais de 7.000 mortos, mais de 100.000 infectados.
Dormir e acordar não importam mais; quer dizer, acordar importa. Colhi o café, bati a massa do pão, friccionei pauzinhos, acendi uma fogueira. Hora de sair pra caçar. Nessa altura, o novo ministro, Teich, fala pouco e faz menos ainda. Hoje, o Presidente assumiu que não é santo (sempre desconfiei) ao ratificar que não faz milagres e completou com um “E daí? Lamento” ao ser confrontado. Voltei pra caverna.
15 de maio de 2020 — 14.058 mortos, 204.795 infectados.
A palavra lockdown já consta no Aurélio, mas só no dicionário. A primeira vacina é anunciada com testes positivos em humanos. O Brasil já é o terceiro país do mundo com maior número de pessoas contaminadas, enquanto o Presidente insiste no uso da cloroquina. O ministro da Saúde, que topou entrar na suruba, lamenta desorganização na suruba e pede pra sair da suruba. Vou dormir de luz acesa.
20 de maio de 2020 — 18.859 mortos, 291.579 infectados.
Pazuello entra, a razão sai. O Presidente insiste no uso da Cloroquina. O Presidente insiste no uso da Cloroquina. O Presidente insiste no uso da Cloroquina.
No Planalto, um fala, outro obedece; no Congresso, ninguém fala, todos obedecem. Nas ruas, todos falam, todos desobedecem. Dormi em posição fetal.
15 de novembro de 2020 — mais de 165.000 mortos, 5.863.93
Após hibernar 6 meses, acordei num país de maricas – segundo o Presidente. Olhei pela janela. Acho que a pandemia passou, tá cheio de gente na rua, só um ou outro de máscara. Liguei a TV, entrei na Netflix e assisti às primeiras temporadas de Coronavac, Sputnik V, AstraZeneca e Oxford – tudo muito complexo, tramas elaboradas. Ansioso pelas novas temporadas. Durmo bem.
15 de dezembro de 2020 — o Brasil ultrapassa a marca de 180 mil mortos.
Shhhh… Pavilhão em silêncio. Vacina aprovada. O Presidente afirma que estamos no finalzinho da pandemia. Desconfio: plano de fuga pronto. 2021 promete. Passo a noite em claro.
15 de janeiro de 2021 — 200 mil mortes.
Já não sei em que ano estou. A vacina foi aprovada, mas parece que surgiram novas variantes, com maior poder de contágio. O governo faz um plano de vacinação. O Presidente sugere que a vacina é bobagem. Negacionistas se seguram para não cair da terra plana, ou do cavalo, ou do pangaré. Avisto um portal no fundo do pavilhão. Parece algo mágico. Corro em direção ao arco de fogo azul. Levito… Vupt! Sou teletransportado…
18 de fevereiro de 1922.
Voltei no tempo. Estou preso em 1922. São quase 100 anos! 99 anos para ser mais exato. Semana de Arte Moderna bombando em São Paulo. Saí na rua e me deu uma vontade maluca de comer carne humana, de mastigar até o osso, sugar algumas proteínas. Mário de Andrade me incentiva. Alguns Tupinambás me ensinam o ritual. Não nego quem sou. Minha ausência de caráter é meu escudo. Quem sabe eu volto em 2022, pra cozinhar o inimigo, seja ele um vírus, um capitão ou um general. Quem sabe… Até lá, não pretendo dormir mais.
Luciano Cian é artista visual, videomaker, designer, pai, filho e irmão. Atualmente se dedica à pintura, atividade redescoberta durante a pandemia. Seus trabalhos são representadas por galerias no Brasil, Estados Unidos, Europa e Ásia.