Desde o início da pandemia, venho enfrentando desafios nunca antes experimentados nos meus 32 anos de prática médica. Muito além da profissão, esta pandemia me atingiu em diversas dimensões como: cidadão, pai e gestor público (sou diretor do Instituto Nacional de Cardiologia).
A experiência mundial tem sido devastadora em relação à vida e avança nas questões econômicas e psíquicas de todos nós. Eu, como médico e também paciente, vivi o medo e a aflição dessa doença com desfecho tão imprevisível. Embora a maioria dos casos tenha evolução favorável, há uma espécie de roleta-russa para quem é contaminado, e sofre com uma espécie de contagem regressiva, torcendo para que as duas primeiras semanas passem sem complicações graves ou morte. Na contabilidade mundial, esta pandemia vem matando milhares de pessoas, destroçando famílias e, infelizmente, ainda com números crescentes de casos. Esse conjunto de problemas gera pânico, ansiedade, angústia, solidão, dentre tantas sensações de sofrimento.
No âmbito da gestão pública, desde o início, reconheci a importância de melhorarmos todas as práticas de segurança tanto para os profissionais de saúde como para os pacientes. Tudo isso, numa situação em que a carência do conhecimento ainda é muito grande. Trata-se de uma experiência totalmente nova e inusitada em escala mundial, desafiadora na necessidade de respostas rápidas. “Vivemos este dia a dia como uma espécie de desafio de trocar a roda do carro, em movimento, incessantemente” – um processo sofrido de implementar, aprender e corrigir; uma situação heroica para todos os profissionais da saúde e cidadãos que apoiaram o sistema de saúde neste momento tão delicado.
Um dos maiores desafios foi garantir a manutenção dos serviços hospitalares para a população SUS, na área cardiovascular, que é a principal causa de morte no Brasil e no mundo e, ao mesmo tempo, proteger esse grupo de alto risco e elevada mortalidade para covid-19, além de todos os funcionários da nossa instituição. Não bastasse a pandemia, o sistema de saúde ainda sofre com fraudes e superfaturamentos. Infelizmente, esses momentos dramáticos são aproveitados por indivíduos tão doentes visto que são capazes de se aproveitar do caos, da emergência sanitária, para ampliarem ainda mais os desvios e falcatruas. E é exatamente neste caldo nefasto, que se precisa ter integridade, agilidade, capacidade de gestão e transparência para dar respostas rápidas e eficientes à sociedade.
Coloquei o Instituto em uma situação muito equilibrada após um grande esforço da nossa equipe em reduzir custos, padronizar insumos, ampliar os sistemas de controle e transparência. Esse trabalho permitiu estarmos plenamente capacitados para prestar um cuidado pleno e de qualidade aos cardiopatas contaminados pelo covid-19. Tivemos a oportunidade de fazer um convênio com a UFRJ, com transferência tecnológica, e já realizamos mais de 4.000 rt-pcr para o diagnóstico de covid, através da nossa área de ensino e pesquisa, agilizando a detecção do vírus e criando condições de maior segurança para todos. Algumas cirurgias foram postergadas visando à segurança dos pacientes, e muitas outras realizadas pela gravidade da doença, o que fez com que a produção seguisse alta, muito acima das médias mundiais de realização de procedimentos cardiovasculares durante este período de pandemia.
Muitas soluções visando à humanização foram implementadas, como as visitas virtuais (instalamos rede WI-FI nos andares do hospital e compramos tablets para que os pacientes pudessem ver e falar com os seus familiares) assim como consultas remotas. As sessões clínicas passaram a ser através da Internet, e seguimos com a nossa missão de ensino e pesquisa, mantendo os cursos de residência médica, de enfermagem, de farmácia e as pós-graduações e mestrado. Diversos POPs precisaram ser adaptados a esta nova realidade.
Nosso gabinete de crise fez reuniões diárias por meses e mantém, até hoje, reuniões periódicas em todas as situações em que se faz necessário. Foram criados e revisados inúmeros protocolos de atendimento e segurança. Gerenciamos a emergência sem tirar o olho nos custos e contamos muito com o apoio da sociedade civil, como o movimento União Rio, Instituto Bees of Love, Andrea Marques, Ambev, entre tantos outros.
O maior aprendizado desta crise é reforçar a necessidade de garantirmos um sistema público forte, confiável e produtivo. Aprendemos a identificar um número maciço de profissionais de saúde e de todas as categorias, incluindo administrativa, limpeza, segurança e alimentação, com garra e bondade suficientes para aguentarmos este tranco. A ação multidisciplinar, o apoio psicológico e os ombros amigos fizeram com que tantos heróis invisíveis pudessem mostrar como o juramento de Hipócrates é pertinente a todos os profissionais que trabalham na área da Saúde e estão em seus corações. Perdemos pacientes, perdemos colegas e familiares, mas não perdemos a garra em tentar salvar o máximo de vidas possível. Nossa luz no fim do túnel consiste na vacinação de toda a população mundial e em um mundo de maior entendimento e cooperação.
Seguimos cuidando dos pacientes com doenças cardiovasculares de alta complexidade com a manutenção de procedimentos como os transplantes cardíacos, tratamentos das cardiopatias congênitas, doenças complexas da aorta, entre outras em que o INC é o principal prestador do SUS no estado do Rio de Janeiro. Não obstante, seguimos focados no final desse túnel e capacitamos, nesses dois últimos anos, a nossa equipe para o primeiro transplante de pulmão da instituição, procedimento este só realizado em outros quatro estados.
Vencem a solidariedade, a transparência e o amor pela vida.
João Manoel Pedroso é médico, diretor geral do Instituto Nacional e Cardiologia. Professor da UERJ e da UFRJ.