Como psicanalista, não tenho por função analisar o mundo social-histórico, mas o social-histórico chega diariamente ao consultório pelas inquietudes e sofrimentos dos analisandos, e aí temos que fazer construções imaginativas, analogias, alegorias, para ajudar a entender o que ocorre no mundo interno.
O próprio Freud disse que essas construções podem estar totalmente erradas; afinal, somos seres humanos, e não máquinas eficientes de produção de sentido. Todavia, essas construções se tornam úteis se podem mostrar elementos que causam os sofrimentos, presentes nas raízes pisico-históricas dos pacientes.
Ao menos, nos consultórios psicanalíticos, as pessoas ainda exercem liberdade de expressão sem patrulhamento ideológico e interferência de ministros do STF.
Os elementos mais frequentes que causam e acentuam sofrimentos são a mentira, a inveja, a crueldade, a soberania voraz e a falta de responsabilidade para combatê-los. Uma fonte frequente de ansiedade, que une esses elementos, está nos relatos que os pacientes fazem do desacato às leis por parte dos órgãos de Justiça, e outros órgãos governamentais. Freud expôs essa questão em sua magnífica obra “O Mal-estar na Cultura”: a lei não impede o crime. Contudo, convenhamos, se são os próprios agentes da preservação da lei que a estão rompendo, o sofrimento torna-se exponencial.
Como ficção, imagino um mundo em que poderíamos denunciar esses indivíduos como causadores de doença mental e enquadrá-los em atentado à saúde pública.
Eu penso que essa questão, como qualquer outra, transcende os fatos manifestos. No mundo interno, a questão da liberdade da crueldade está presente nos relatos sobre alguém que, condenado, deveria estar preso, mas está solto, ou quando alguém investiga, julga e condena ao mesmo tempo e em causa própria. Posso mostrar, nesse modelo social-histórico, a existência de um modelo pisico-histórico insidioso de crueldade e da soberania voraz.
Os países mais poderosos do mundo vêm seguindo esse modelo de crueldade. Eles dominaram os países menos favorecidos com o conceito de um mundo unificado, submisso aos seus interesses. Isso se chama globalização e vem produzindo muitos danos, que foram agravados pela pandemia.
A imposição cruel dos países poderosos sobre os menos favorecidos pode ser analogicamente comparada à primazia do individual sobre o social – a liberdade da nulidade e o aprisionamento dos direitos.
A globalização perversa se inicia na imposição da tirania da informação na vida dos cidadãos, influenciando as relações sociais, e ditando valores que convêm aos “donos do poder”. Ela cria confusão conceitual, pretendendo desfazê-la, e gera a dificuldade para diferenciar juridicamente o que é certo ou errado. Dá voz a quem não entende dos assuntos e colabora com juízos monocráticos totalitários, indiretamente atestando a impunidade. Com isso, recheia a desconfiança cada vez maior de que a Justiça é para os ricos. O indireto é sempre cruel.
A globalização totalitária torna o Estado, as instituições e os indivíduos embrutecidos e selvagens. Com isso, as pessoas se sentem desamparadas, inseguras e, por efeito, adaptam-se ao “dançando conforme a música” – música da hipocrisia imposta pela orquestra de determinadas elites, que transforma cidadãos em seres miméticos, gerando a maldade em efeito cascata. O humor cede lugar ao ódio explícito.
Se o homem moderno já tendia, cada vez mais, a ser solitário, a viver uma vida fechada virtual e imaginária, permeada pelas relações online, ou off-line, isso piorou com a pandemia. O anonimato da superficialidade digital deleta as relações humanas, tornando-as frias e distantes. As pessoas têm medo das outras. Tal fato impõe uma derrota moral e ética da nação.
A noção do bem público sofreu um absurdo retrocesso graças a essa globalização perversa. Instituições atuam como se não fossem parte do País e até deste planeta. Com isso, o ser humano não pode identificar nem valorizar o patrimônio cultural da sua sociedade. A Cultura despencou na mão de militantes de mentiras políticas.
A globalização perversa trouxe a ausência de solidariedade e de valores éticos, eliminou a competição saudável e instaurou a liberdade da competitividade cruel. Esta avança cada vez mais, desqualificando os profissionais capazes. Assim, quem fornece profissionais é a política dos poderosos, uma política desleal, sem nenhuma crítica real e com muita desqualificação do ser humano, validando, assim, o roubo, a trapaça, a mentira, e a desilusão com o País.
Arnaldo Chuster é psiquiatra e psicanalista, membro de todas as Sociedades Brasileiras da sua área e ainda do Instituto Psicanalítico de Newport, na Califórnia. Tem consultório em Ipanema e costuma fazer palestras no Brasil inteiro. É também um estudioso do trabalho do psicanalista britânico Wilfred Bion.