Qual seria sua reação diante do diagnóstico de uma doença letal? A pergunta parece enredo de ficção até que o resultado do exame chegue às suas mãos ou o seu médico o convoque para uma conversa difícil. Fui casada durante 20 anos com o jornalista Gilberto Dimenstein, que morreu de câncer em maio de 2020. No nosso caso, o anúncio que confirma a efemeridade da vida bateu à nossa porta por meio de um sonho.
Gilberto sonhou com uma médica que lhe dava a notícia de maneira clara e direta, sem nenhum subterfúgio. Atento aos sinais de que o universo lhe enviava, decidiu consultar a ciência e precisou de menos de 48 horas para descobrir que a premonição tinha fundamento. Foi assim que demos início aos 10 meses de travessia relatados com leveza, reflexão e poesia no livro “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida”, lançado pela Editora Record em novembro de 2020.
O título, escolhido pelo próprio Gilberto, parece contraditório diante do que sabemos sobre o tratamento de tumores agressivos. De fato, mais do que a própria doença, a quimioterapia trouxe inúmeros desconfortos e sofrimentos para o meu marido e para todos que estavam à sua volta. No entanto, Gilberto insistia em dizer que, para cada dor, há uma compensação, desde que você se conecte com o que há de mais essencial na vida.
Por isso, quando o mal-estar e os enjoos davam uma trégua, pegava sua bicicleta turbinada e ia tomar um sorvete de maracujá e limão siciliano na sorveteria do bairro, saboreando o programa com um prazer espontâneo e genuíno. Depois, recolhia-se na nossa casa, para apreciar os pequenos milagres cotidianos que sua vida de jornalista afobado e ansioso o havia privado de usufruir. Passou a prestar atenção na beleza das flores, dos pássaros e do pôr do sol que coloria a varanda do nosso quarto.
Gilberto destacou-se na carreira e no cenário nacional como jornalista político. Foi diretor da sucursal da Folha de São Paulo em Brasília, ganhou muitos prêmios por reportagens investigativas sobre casos de corrupção. Mas seu maior legado traduz-se nas inúmeras ideias, iniciativas e projetos sociais que desenvolveu para defender os direitos humanos, dar visibilidade aos invisíveis, empoderar os cidadãos e melhorar o mundo.
A consciência de ter levado uma vida com propósito deixou-o mais sereno diante da proximidade da morte. Para ele, um ser humano sem uma narrativa, um propósito, é como um ator no palco sem saber o roteiro. Gilberto olhava para trás e tinha orgulho do que havia construído.
Mas a nobreza do seu trabalho não o impediu de também aproveitar os seus últimos dias para refletir sobre os seus tropeços e dificuldades. Considerava-se um analfabeto emocional e quis resgatar sua capacidade de se conectar afetivamente com amigos e familiares. Pediu desculpas àqueles com os quais achava que havia agido mal e declarou-se para os que nunca tinham ouvido manifestações mais explícitas de carinho.
Entre nós dois, o amor que já era intenso, mesmo antes de acontecer, aprofundou-se ao ponto de atingir o nível da incondicionalidade. Dançamos o nosso último paux de deux com uma entrega e sintonia que fizeram nossas almas se fundirem para toda a eternidade, mesmo após nossos corpos se apartarem na mais dolorosa e bela despedida.
O livro, que conta todo esse enredo, não é pesado nem se foca nos aspectos mundanos da doença. Trata da morte como mote para repensarmos a nossa própria vida — uma leitura inspiradora para os tempos difíceis que atravessamos. É uma narrativa recheada de verdade e emoção, que Gilberto foi registrando em depoimentos orais ao longo dos seus últimos meses, e eu transformei em texto após a sua partida.
Ninguém sabe exatamente qual será a sua reação ao deparar com o limite da vida, mas Gilberto me ensinou que a morte pode ser um “gran finale” para quem sobe ao palco da existência com consciência sobre seus atos e amor por aqueles com os quais contracena.
Foto: Peartree Photography
Anna Penido é jornalista, educadora e coautora do livro “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida”, escrito com o seu amor, Gilberto Dimenstein.