A pandemia acaba de fazer um ano de Brasil (dia 26/02) e, em 365 dias, estamos assistindo a um embate entre ciência e negacionismo — com a segunda “pugilista” levando vantagem, enquanto ocorrem mais de 250 mil mortes e 10 milhões de casos da Covid-19. Conversamos com a médica Margareth Dalcolmo, convidada esta semana, como uma espécie de consultora do movimento “Unidos pela Vacina”, criado pelo grupo “Mulheres do Brasil”, da empresária Luiza Trajano, dona da rede Magazine Luiza, cujo projeto-piloto, que começa no Rio, pretende mapear os principais entraves da vacinação pública oferecida pelo SUS e ajudar na logística da distribuição das vacinas no Brasil inteiro, com ajuda de empresários locais.
A Dra. Margaret é pneumologista, pesquisadora da Fiocruz e membro do grupo de especialistas do Ministério da Saúde, que, como sabido, virou praticamente uma professora quando o assunto é a Covid-19, por sua entrega, competência e empenho em passar informações para a população. Como dito aqui, ela atua, dia e noite, contra a pandemia, para todas as criaturas: desde as que acham que máscara é escolha pessoal até os que têm noção do que o mundo está vivendo.
Comente a performance brasileira na pandemia como médica e como cidadã.
No Brasil, foi muito lamentável a performance da condução da epidemia. Desde o início, não conseguimos ter uma harmonia entre autoridades do discurso oficial e a ciência brasileira, que se debruçou com muito afinco no sentido de acompanhar e produzir informação científica. Muitos de nós viemos a público passar sempre informações verdadeiras e transparentes para a população; além disso, muitos grupos brasileiros participaram de estudos com grupos internacionais mostrando grande compromisso. Então, desde o início, houve um descompasso entre um discurso negacionista, do ponto de vista das muitas autoridades no Brasil. Essa falta de harmonia prejudicou a sociedade de modo geral.
Alguma grande frustração nesse período? Qual e por quê?
Sinto uma enorme frustração por não conseguirmos ter realizado esse discurso e ver as ações que nós recomendamos desde o início, entre elas, o teste em massa, para que diagnosticássemos rapidamente os casos. Em vez disso, a energia foi gasta com a divulgação de informações que não tinham a menor fundamentação científica, como essa coisa de tratamento precoce, que, até hoje, continua vigorando, inclusive entre alguns colegas, o que é muito triste porque nada disso serve pra nada, só pra enganar as pessoas e, eventualmente, retardar um diagnóstico que pudesse ser assistido de outra maneira. Há muita gente internada, em terapia intensiva, que ficou tomando esses medicamentos e que pra nada serviram; naturalmente, isso gera muita frustração. Há falta de compreensão em geral e equívocos no comportamento da própria sociedade brasileira. Vimos a doença mudar de lugar: entrou na casa das pessoas de mais idade, que não saíram o ano inteiro, e adoeceram porque o vírus foi levado pelos mais jovens que se aglomeraram e fizeram festa de fim de ano, carnaval, tudo contrariando o que nós dissemos. Disse que teríamos o mais triste janeiro de nossas vidas, agora digo que teremos o mais triste março de nossas vidas — infelizmente.
A senhora chegou a dizer que pessoas de menos de 60 anos poderiam começar a ser vacinadas em março. Alguma surpresa?
Só há uma maneira de interromper e controlar a epidemia: vacinar muita gente e em pouco tempo, senão estamos propiciando um ambiente adequado e ideal para o aparecimento de novas variantes. Vírus são seres vivos em mutação o tempo todo, então, se nós damos as condições ambientais adequadas para que isso aconteça, cada vez mais, teremos variantes, e as vacinas existentes atualmente podem deixar de funcionar. Até o momento, elas cobrem as variantes que circulam no Brasil, mas isso pode deixar de acontecer. Por isso, há uma necessidade de fazer estudos que chamamos de “vigilância genômica”, para saber se as vacinas estão efetivamente cobrindo e protegendo contra as novas variantes do Sars-cov 2.
Dados os últimos acontecimentos, a senhora acha que todos os brasileiros serão vacinados ainda este ano? A senhora disse também que o ideal seria vacinar 70% da população no primeiro semestre. Ainda há chance para isso?
A minha posição é pública, e eu já disse mil vezes que precisamos vacinar pelo menos 70% da população até o fim do semestre. Tenho conversado com a iniciativa privada: almocei com a empresária Luiza Trajano há alguns dias, no sentido de colaborar através do grupo espetacular que ela preside, chamado “Mulheres do Brasil”, que reúne não só mulheres, mas também empresários de grande envergadura. Há um compromisso por parte desses empresários da iniciativa privada de colaborar realmente, de maneira robusta, na logística de distribuição e acesso equitativo às vacinas (Luiza criou o movimento “Unidos Pela Vacina”, para facilitar a distribuição dos imunizantes para todos os brasileiros até setembro). De modo algum, foi considerada a possibilidade de compra ou qualquer modalidade de aquisição privada de vacinas; isso é um dever e uma tarefa do Governo Federal, mas a iniciativa privada vai poder colaborar de maneira bastante forte na logística e no acesso à vacinação. O que nós precisamos, em resumo, é vacinar pelo menos 70% da população brasileira até o fim deste semestre. Isso seria a medida sanitária correta e a única possível para controlar a transmissão epidêmica.
Qual o tamanho do prejuízo causado pelo negacionismo?
Sem dúvida nenhuma, o prejuízo do negacionismo é enorme pela tragédia que hoje cobre o Brasil com esse número de mortes. Seguramente, uma grande parte dela poderia ter sido evitada, caso não tivesse havido esse descompasso na recomendação contrária aos cuidados pessoais e coletivos aos quais nos referimos o tempo inteiro: máscara, distanciamento, fiscalização adequada para transportes coletivos, que, neste momento precisarão ser feitos.
Qual o tamanho da possibilidade de acontecer um novo lockdown no Rio?
Há, sim, o risco de haver um fechamento mais rígido durante alguns dias no Rio. Em alguns estados, está sendo recomendado o fechamento entre 23h e 5h, o que não vai adiantar de nada, porque é um horário que não vai haver aglomeração, apenas numa ou noutra festas eventuais.
Resuma um ano de pandemia, falando de temores, expectativas e esperança.
Eu diria que esse um ano de pandemia gera ainda mais temores; nós nunca pensamos que estaríamos nesta situação um ano depois. Isso gera expectativa e também esperança porque existem os que têm um pouco mais de consciência, sabem e já entenderam que temos uma arma muito poderosa, que são as vacinas. O SUS, com essa capilaridade enorme e gigantesca no Brasil, poderá fazer, de modo equitativo, o acesso às vacinas. Essa é a única solução para que consigamos voltar à normalidade das nossas vidas, deixar a economia retomar, as pessoas terem emprego, as escolas funcionarem normalmente e retomarmos, em última análise, a possibilidade de poder nos abraçar.
(Foto): Claudia Martini