O homo sapiens viveu milênios em cavernas. Depois, mais alguns milhares de anos em casas térreas, tendo acima de si apenas o telhado ou, no máximo, um terraço, e sob seus pés, só o chão — ou um assoalho.
Por mais que na Roma antiga já houvesse edifícios de dois ou três pavimentos, o homo empilhadus é uma espécie bem recente. Seu organismo ainda não se adaptou ao novo habitat. Geneticamente, esse ser continua programado para agir como seus ancestrais trogloditas.
(Ao contrário do que muitos pensam, a palavra “troglodita” não se refere a pessoa mal-educada ou que só fale um idioma. Vem do grego “trogle” (buraco) + mais “dyein” (entrar em). Claro que a maior parte dos trogloditas não primava pela educação esmerada ou pela fluência em variadas línguas, mas isso é outra história.)
Trogloditas incorporaram, ao longo da sua existência, o hábito de arrastar móveis. Podia ser para se exercitar (não há menção a Smart Fits nos papiros, nos hieróglifos, nos pergaminhos, nos alfarrábios). Podia ser para escapar do tédio (nunca foi encontrado registro de Candy Crush ou plástico bolha em nenhuma escavação arqueológica). Ou um feng shui em estágio embrionário. O que se sabe é que nenhuma minhoca jamais reclamou, então os trogloditas continuaram arrastando móveis impunemente, milênios a fio.
E eis que surgem os edifícios de apartamentos. Com um troglodita (aí, sim, já no sentido de pessoa de hábitos sociais não muito refinados) morando em cima do outro. E, claro, arrastando atavicamente os móveis.
(Se este texto fosse uma laive, vocês já teriam entendido por que — com tanto assunto mais interessante — estou escrevendo sobre trogloditas e arrastamento de móveis. Alguns talvez estivessem se perguntando se o prédio está em obras, se está trovejando ou que diabos faria uma retroescavadeira dentro do meu apartamento. Não, o prédio não está em obras — não hoje; não, o temporal foi ontem – hoje está só chuviscando; e, de novo, não, não costumo trazer trabalho para casa. É a troglod…, digo, a vizinha de cima.)
Ela faz parte da espécie homo empilhadus — essa que pega elevador, paga condomínio, fala mal da síndica e… arrasta móveis. Arrastar móveis é o seu ponto de contato com os neandertais, denisovans, habilis e que tais.
Ela não deve arrastar móveis por necessidade, mas como os lobos ui vam para a lua — por instinto. Com a diferença que os lobos só uivam para a lua de noite e, suponho, na lua cheia. Se lobo uivasse cada vez que ela arrasta um móvel, ser fonoaudiólogo de lobo seria o melhor negócio do planeta.
Imagino se o vizinho de baixo também pensa em mim como um troglodita quando puxo uma cadeira para me sentar. Se também ele acha que vai levar milênios até que o homo empilhadus que mora acima dele entenda que o vizinho de baixo não é uma minhoca. (Minhoca, até onde sei, não tem audição nem trabalha em romiófice.)
Devíamos, todos, assumir nossa trogloditice e voltar a morar em cavernas. Deixar essa coisa de viver empilhado para seres mais civilizados, como os joões de barro, as abelhas e as formigas. Até porque eles não têm móveis.
Ou então só permitir que viva em apartamento quem se limitar a ter móvel fixo. Se bem que algo me diz que a vizinha de cima arrasta até armário embutido. “Ulustração: Pinterest”