Quando você nasceu, um anjo boêmio, desses que tocam cavaquinho, disse: “Vai, Carlos! ser generoso na vida”. E você não se fez de rogado: abriu a adega, o bolso, a sala de casa, o coração.
Fui seu amigo temporão, e nem por isso menos amigo de infância — essa infância tardia que é mais nossa, porque conquistada. Essa que se retoma já na reta de chegada, quando finalmente a gente se concede o prazer de ser criança.
Há alguns dias já não havia mais esperança, mas como abrir espaço para o desengano? Era preciso que você se recuperasse para mais uma risada, mais um sarau, mais um encontro. Mais um mês, talvez um ano. Um só, ou dois. Três, quem sabe? para te ouvir de novo dedilhar o violão, fazer um galanteio, uma piada, contar (mais uma vez!) como surgiu o “Ponto G” — aquela celebração da música e da amizade.
E você se deparou com a única, inadiável, inescapável verdade. Sem abraços, sem despedidas. Logo você que era todo cortesia, que era o melhor anfitrião.
Na última mensagem você diz “50% do pulmão tomado”. “Os 50% menores”, respondi. Porque havia fôlego para mais um jantar, mais um convite, mais uma garrafa de vinho. Porque já havia um músico convidado. Porque quem sabe ainda seria possível juntar os mais próximos, em número limitado, e, com todos os protocolos (ou quase todos…) supor que a vida poderia voltar a ser como antes.
Querer nunca é o bastante. Neste sábado, o jeito foi dizer adeus à distância, sem compartilhar as histórias que teríamos para contar. Sem lembrar aquele dia, aquela noite, aquele show, aquele bar. O disco que você produziu, o músico que apadrinhou, o violão que deu de presente, o paciente que anestesiou. (Não é um paradoxo alguém que vive da sensibilidade ter se dedicado à anestesia?)
Quando você morreu, um anjo brincalhão, desses que tocam chorinho, deve ter dito: “Valeu, Carlos! não ter desperdiçado o dom da sua grande arte — poupar da dor, doar-se na música, cultivar o convívio e a generosidade”.
(Para o Carlos Gomide, médico, músico, amigo, que esta semana virou saudade.)