O mundo ficou em choque com as cenas desta quarta (06/01), depois de os apoiadores de Donald Trump invadirem o Capitólio, em Washington, gerando uma série de condenações internacionais, de aliados tradicionais dos Estados Unidos, como potências europeias e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Os manifestantes paralisaram a sessão para contar os votos do Colégio Eleitoral e certificar a vitória de Joe Biden, a última etapa formal do processo eleitoral antes da posse do democrata, em 20 de janeiro.
O Presidente Jair Bolsonaro não se manifestou até o fim desta publicação, mas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), publicou uma nota no Twitter, dizendo que “a invasão do Congresso norte-americano por extremistas representa o desespero de uma corrente antidemocrática que perde as eleições. Está cada vez mais claro que o único caminho é a democracia, com diálogo e respeito à Constituição.”
Pouco depois da invasão, o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, foi à TV americana afirmar que “a democracia americana está sob um ataque sem precedentes”. Minutos depois, Trump divulgou um vídeo no Twitter, no qual insistiu na teoria falsa de que a eleição foi roubada e, apesar disso, pediu aos manifestantes que voltassem para casa. Uma mulher morreu depois de ter sido baleada no ombro, segundo a rede de TV NBC.
Conversamos com o cientista político carioca Mauricio Santoro, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio (Iuperj), professor-adjunto do departamento de Relações Internacionais da UERJ, onde integra o Núcleo de Estudos sobre a China, sobre o assunto e os possíveis reflexos no Brasil.
O que os apoiadores de Trump fizeram têm explicação?
É tudo muito brutal, muito impactante, mas tem uma explicação que é o seguinte: qual o interesse do Trump em tudo que está acontecendo hoje? Ele quer incitar o caos, tirar a legitimidade, o respeito das instituições democráticas, do processo eleitoral americano para fortalecer a mensagem e imagem políticas de que ele luta contra um sistema falido, esse que está contra ele, tentando cercear as ações dele, um sistema que acabou, não funciona mais e é ele quem representa os reais interesses do povo americano. Claro que ele sabe que todo esse tumulto com a invasão do Congresso, vandalismo e depredação não vai mudar o resultado da eleição. Mas isso é algo que dá uma paixão aos seguidores dele, uma capacidade de mobilização muito grande, e ele vai sair da Casa Branca, no dia 20 de janeiro, à frente de um movimento político muito forte e que, com certeza, vai abrir a porta para que os filhos dele se candidatem a congressos, a governos estaduais, prefeituras, o que seja, até para que ele mesmo continue sendo uma figura nacional, alguém de poder e influência. Ou seja, do ponto de vista dele, que é o movimento populista que ele construiu nos últimos anos, isso tudo faz sentido.
E como fica a imagem dos EUA depois desse episódio?
Isso é muito ruim para os EUA. Hoje é um dia que vai entrar para história, mas por essa perspectiva negativa, como um símbolo de violência, agressividade e o total desrespeito às normas de um país muito fragmentado. O dia de hoje vai ser uma sombra para o governo de Joe Biden e para os EUA nos próximos anos, no sentido de mostrar que há um percentual muito grande de pessoas que não estão dispostas a aceitar mais as regras democráticas, que vão agir independentemente do que seja o resultado de eleição, do que seja a decisão do Congresso, da Suprema Corte. Então, isso é uma instabilidade política, de riscos de violência, que infelizmente vai marcar essa transição do governo Trump para o governo Biden.
Por que a polícia não estava preparada?
O fato é que isso nunca aconteceu nem nos primeiros anos da vida política americana, em que tudo estava sendo inventado, tudo construído. O máximo que temos em comparação foi na década de 1850, que precedeu a Guerra Civil, quando ocasionalmente havia brigas físicas, dentro do Congresso, entre senadores do norte e do sul, mas nunca uma invasão como a de hoje, com tiro, depredação de gabinete. Além de tudo, foi um dia marcado por essa inacreditável incompetência da polícia de Washington. Como é que, num dia assim, com todas as tensões políticas dos últimos meses, ela não estava preparada para encarar, como não houve um cordão de isolamento em volta do Congresso? O que não é difícil de fazer, porque o prédio fica no alto de uma colina. Para um manifestante subir ali não é uma coisa muito trivial, mas nem isso a policia conseguiu. A leitura da polícia foi que o pior já tinha passado, que as cenas aconteceriam em novembro, durante as eleições, o que acabou sendo relativamente tranquilo. Tiveram momentos de tensão e tal, mas nada que saísse do controle, e, para muita gente, a ideia fosse essa. Mas o pior não tinha passado e fica claro o alerta, o risco para o que vai ser a posse de Joe Biden no dia 20. Vai ter que ser uma posse com uma série de preocupações extras de segurança.
Acredita no envolvimento direto de Trump?
Não existe nenhuma indicação, mas, indiretamente, sim, na medida em que ele passou os últimos meses de 2020 dizendo que a eleição seria fraudada, de que os resultados não seriam válidos. No fim de semana, o jornal Washington Post publicou uma gravação de Trump ameaçando um secretário do governo da Geórgia para que ele fraudasse os números no estado; então, ele já vinha instigando um ambiente de polarização, de radicalismo, que tem um preço. Muitas pessoas não vão se limitar a ouvir e aplaudir de casa; elas vão para as ruas, vão se mobilizar. Com essa possibilidade de mobilização violenta, de invadir o Congresso, de dar tiro na Câmara dos Deputados, então é muito impressionante.
E os reflexos no Brasil?
Qual o grande risco? Pela importância política que os EUA têm no mundo inteiro, o que acontece lá repercute em vários países, e é claro que muitos líderes populistas mundo afora vão olhar o que o Trump fez agora e vão seguir o roteiro. Vão dizer que a eleição foi fraudada, não confie nos resultados, nos Tribunais, no Congresso, isso tem o risco de se repetir em vários países, e com agravante de, com tudo o que está acontecendo de ruim nos EUA, pelo menos algumas das instituições americanas têm funcionado, como os militares que não se meteram nessa história e não apoiaram Trump nessa reivindicação de que as eleições foram fraudadas. Imagina isso num país da América Latina, onde os militares são muito mais envolvidos na política partidária! O risco seria muito maior. Ou em países europeus, como a Hungria ou Polônia, que já vêm de muitos anos de degradação das suas democracias. Então é muito grave. O Trump basicamente inventou um roteiro que vai ser seguido por extremistas mundo afora. Estou muito preocupado quanto ao governo Bolsonaro porque todas as previsões otimistas que fiz nos últimos cinco anos estavam erradas; então, uma cerca cautela é saudável. É bom ficar preocupado.
Existe um paralelo entre os apoiadores de Bolsonaro?
A gente pode fazer vários paralelos, por exemplo, os seguidores do Trump depredaram o gabinete da Nancy Pelosi, presidente da Câmara do Deputados, ou seja, eles odeiam porque ela é democrata, porque é mulher, faz oposição ao Trump. Aliás, foi um protesto muito masculino, majoritariamente homens brancos, jovens, uma demografia muito marcada. Imagino uma cena como essa dos manifestantes pró-Bolsonaro invadindo e depredando o gabinete do Rodrigo Maia, que eles detestam, invadindo o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal, quebrando as salas de audiência. Esse sentimento de raiva contra as instituições está muito presente tanto nos EUA como no Brasil, e essa raiva não foi inventada pelo Trump nem pelo Bolsonaro – é fruto de muitos problemas nessas instituições, de muitas falhas nas democracias americana e brasileira, mas é claro que esses presidentes incitam muito esse sentimento para fins políticos de fortalecer suas bases sem ter de fato um compromisso em transformar essas instituições e tentar torná-las melhores.
Qual seu sentimento como cientista político?
É de espanto, de surpresa, porque nunca pensei que, algum dia, eu fosse fazer uma análise do Congresso americano sendo invadido. É tão distante do que é a história americana, da tradição política, que estou perplexo. Têm duas coisas: a sessão de hoje no Congresso era para fazer a contagem oficial dos votos do colégio eleitoral e para referendar que o Biden é o novo presidente. Foi interrompida e temos que ver como ela vai se dar agora; imagino que será em breve, e para ter o reconhecimento formal.
Tem alguma previsão para os EUA a partir de agora?
Uma outra notícia importante do dia foi na Geórgia, que, como outros estados americanos votou pelos senadores em novembro, só que nenhum dos candidatos conseguiu mais de 50% dos votos. Então houve um segundo turno, os votos estão sendo contados, mas já sabemos que teve um candidato democrata que venceu, e é possível que, para o segundo cargo de senador, tenha empate, mas tendendo para o democrata. Se isso acontecer, vai significar que os democratas vão ter o mesmo número de senadores que os republicanos, e como a vice-presidente também é presidente do Senado, ela pode votar em caso de empate, o que dá uma margem para os democratas. Então, eles controlariam o Senado, a Câmara dos Deputados e a Casa Branca. E, além disso, da maioria no senado, o que acontece na Geórgia é interessante porque é um estado majoritariamente rural, no sul dos EUA, muito conservador, mas que está mudando pela primeira vez em décadas, que está reelegendo uma liderança política progressista, e isso pode ser o futuro do partido democrata: trabalhar com eleitor mais jovem, levá-los às urnas. E, para terminar o dia com mais esperança, a fotografia no geral é muito ruim, mas o filme, nem tanto. Há coisas boas e ruins nos EUA. Esse processo de mudança é uma maneira de reformar a democracia americana, de torná-la mais sensível aos problemas sociais do país. Não que o Trump estivesse se revoltando contra a democracia, que estava funcionando bem. Ele é fruto dos problemas e das falhas estruturais dessa democracia.