Este ano, teremos um tenebroso Natal no Brasil, com o peso de quase 190 mil mortos pela Covid-19. A família se reúne com cadeiras vazias, a morte ronda, o temor de contaminar e de ser contaminado, sem saber se o inimigo habita o corpo do parente que nem sequer próximo. O medo impera e, no início da comilança, alguém solta: “Não estou sentindo gosto de nada!” Lá fora, o vírus óbvio e pululante segue sua devastação silenciosa. Nos hospitais, assombrados por ‘gritos e sussurros’, médicos e enfermeiros choram a perda de seus pacientes enquanto enviam “Feliz Natal” por celular.
O Natal sempre traz à mesa a bendita “família”, fazendo eclodir afetos bem silenciados durante o ano pela rotina individualista. É o momento dos encontros amorosos, quando Eros, o deus que junta e unifica, estende a toalha de paz e amor na mesa da confraternidade. É também o momento da discórdia, quando o deus da morte, Tânatos, comparece sem ser convidado, com seus afetos negativos: “maldita família!”
É necessário repensarmos o que é família e o que é o peso do automatismo de repetição que naturaliza a obrigatoriedade daquele grupo humano de se reunir. Em nome da família, cometem-se as maiores atrocidades, até mesmo um golpe de estado. Quem consegue esquecer a obscenidade dos votos dos parlamentares pelo impeachment da Dilma em nome da família? Deu no que deu, foi eleito um presidente favorável à tortura, ao estupro, ao supremacismo branco, à misoginia, à homofobia, mas defensor dos valores da família. Surpresa? Nem tanto, pois encontramos muitas de suas características na moral pequeno-burguesa que domina o lar de muitos brasileiros: a heteronormatividade, a monogamia de fachada, o androcentrismo, a xenofobia e o racismo. Esse é o vírus que contamina a família determinada pela ideologia dominante.
A hipocrisia é a marca da família tradicional brasileira, a qual tem sempre, na ponta da língua, uma lição de moral. Só que aqueles que têm o discurso mais moralista são os mais amorais (Freud): a capa da moralidade é muito frágil.
A margarina da família derrete-se na primeira mordida do café da manhã. A família é o lugar dos complexos familiares (Lacan) — o do Édipo, com a violência trágica das paixões: amor, ódio e ignorância e seu cortejo de ciúmes, sentimentos de rejeição e culpa. E também do complexo fraterno com a ambígua mistura da cumplicidade e da rivalidade mortal vivida pelas crianças. Elas crescem e os complexos permanecem lá no fundo do mar do inconsciente; contudo, como um polvo ferido, despertam no Natal. O modo como cada um vai lidar com seus polvos e ultrapassar seus complexos é o que vai determinar seu Natal em família. Que família?
É possível constituir uma família por adoção (até mesmo a de origem), feita por laços afetivos em que predominam o respeito à diferença, a solidariedade e o desejo e o prazer de estar junto. Sem essas características, qualquer discussão sobre política, sexo ou religião solta todos os ódios e ressentimentos represados.
É importante repensar a família fora do modelo biológico, e saber se você quer pertencer e frequentar a família em que você nasceu e adotá-la como sua, ou constituir uma outra por mútua adoção. E, por escolha, ir ao encontro de sua família, de forma física ou virtual, apostando que Eros será o vencedor e seu Natal será um encontro querido e revigorante de seu ser-para-a-vida.
Antonio Quinet é psicanalista, psiquiatra, doutor em Filosofia e dramaturgo.