O que seria da minha, da sua, da nossa vida na pandemia, sem os garis? A força que eles têm foi ainda constatada com todo mundo produzindo lixo sem conta, mais do que de costume; certamente, personagens indispensáveis com ou sem covid. No Rio, temos um representante da classe há mais de duas décadas, desde que virou um dos maiores símbolos do carnaval carioca, ao cruzar a Marquês de Sapucaí, sambando com a vassoura: Renato Luiz Feliciano Lourenço, o Gari Sorriso, de 56 anos, dos quais 25 anos na Comlurb. “Nós nem podemos reclamar – coveiros, bombeiros, policiais, médicos e enfermeiros trabalharam muito mais”, explica, enquanto esclarece orgulhoso que nem ele, nem a mulher, Leila Lourenço, nem nenhum dos três filhos, Larissa, Renata e Jeferson, pegaram covid. Contudo lembra-se das perdas que sofreu com o vírus. “Perdi quatro parentes muito próximos”, lamenta, completando: “Nós estamos acabando com o Planeta, colhendo o que plantamos. Não damos importância a ele, não estamos tomando conta uns dos outros. Esse é o nosso propósito na Terra. Tudo que estamos vivendo, a pandemia, acredito, veio para mostrar isso.”
Como foi encarar a rua no auge da pandemia?
Trabalhei dia sim, dia não, no auge de tudo. É claro que tive medo em diversos momentos; afinal, o vírus é invisível. Nós, garis, nem podemos reclamar, pois coveiros, bombeiros, policiais, médicos e enfermeiros trabalharam muito mais. Preciso contar que a Comlurb fez tudo certinho: deu palestra explicando os riscos, deu material para trabalharmos, tudo lavado e higienizado, luva nova a todo o instante. A empresa também deixou os garis mais vulneráveis, mais velhos e com doenças, em casa o quanto deu.
O que de mais inusitado, neste período de pandemia, encontrou no lixo?
Reparei um grande aumento de material hospitalar no lixo do carioca: caixas de remédio, curativos, além de muitas máscaras e luvas; a grande maioria, inclusive, é descartada de forma errada. É curioso isso porque, através do lixo, você aprende a ler uma pessoa, os consumos de uma família, os hábitos dos moradores de determinado bairro. Enfim, aprendi a fazer essa análise ao longo de muito tempo de profissão.
Qual a maneira correta de lidar com o lixo da covid?
A forma correta de descartar máscaras e luvas faz diferença no combate a essa doença. Elas não devem ser jogadas no lixo reciclável; os materiais devem ser colocados dentro de sacos plásticos (um dentro do outro), bem amarrados e jogados no lixo comum. Também recomendo ensacar duplamente todo o seu lixo.”
Podendo pedir um presente de Ano Novo ao prefeito, qual seria?
Saúde, paz e a vacina, claro. Também gostaria de pedir mais simancol às pessoas, sabe?! Não adianta só cobrar dos governantes – temos que fazer nossa parte. Nesta semana, fiz 25 anos como lixeiro. São mais de duas décadas na rua, e vejo de perto o comportamento das pessoas. Nós somos o prefeito, o governador, nós somos os vereadores. Cada um tem que fazer o que lhe cabe. É como eu disse: uns cuidando dos outros.
Você já recebeu várias propostas para sair da Comlurb e nunca aceitou. Por quê?
O Roberto Carlos larga o microfone? O Zico parou de jogar, mas largou a bola? Então, eu não deixo a vassoura – devo tudo à ela. Por que vou largar a vassoura, minha dama do samba e da vida? Eu trabalho com lixo, mas sou um luxo!
Mesmo não sendo recomendado, basta abrir o sol que as praias ficam lotadas e, consequentemente, sujas. O que diria para quem acha que a pandemia acabou?
Eu perdi quatro parentes muito próximos para a covid. Aqui, na minha casa, nem eu, nem minha mulher, nem meus filhos pegamos. A pandemia ainda não acabou, e eu diria para os banhistas que correm para a praia, assim que faz calor, e deixam as areias imundas, que não façam festinhas na rua, luau na praia, nada disso. O Planeta precisa dessa pausa, temos que entender. A praia não vai mudar de lugar, ela vai ficar lá. É só esperar um pouquinho.
Como repercutiu para vocês, garis, o cancelamento do réveillon?
Ano novo vai existir — não vamos ser hipócritas, e isso é uma grande negatividade neste momento. Mas cada um assume sua responsabilidade ao sair de casa, cada um sabe o porquê de ir para a rua. Eu trabalhei na rua, no dia de Natal, porque precisei. Não tive como escapar, são datas sanitárias que precisam do nosso serviço. A escala do réveillon ainda não saiu; não sei como vai ser o meu Ano Novo.
Como surgiu isso de começar a sambar enquanto limpava a Sapucaí?
Isso foi no carnaval de 1998. Eu não aguentei: comecei a sambar igual a um doido enquanto varria a avenida. Mas que fique claro: nem por isso eu deixo de fazer minha função, que é varrer. Quase tomei uma suspensão; corri até o risco de ser mandado embora. Daí a comentarem, dizer que sou símbolo do carnaval… Tudo isso aconteceu naturalmente, não forcei a barra para nada.
Você ganha muito dinheiro com suas performances?
Só ganhei saúde e sabedoria (rs rs). O retorno financeiro que tenho é com meu trabalho, na Comlurb, empresa que eu amo e paga as minhas contas em dia. O que recebo com eventos, penso que é uma espécie de caixa 2, tipo o que vier é lucro. Sei o meu lugar e não me iludo: meu palco mesmo é a rua (atualmente, as ruas da Tijuca, onde trabalho).
Já reclamou com algum cidadão porcalhão na rua?
Nunca repreendi uma pessoa ao vê-la jogar lixo na rua, jamais, nunquinha mesmo… Não cabe a mim, não é o meu papel. Agora, o que já fiz foi dar o exemplo: vi uma pessoa jogando lixo na rua e fui lá, na frente dela, catei do chão e joguei no lixo. Tudo com o maior sorriso.
E os garis ficaram felizes com a vitória do Eduardo Paes?
Não entro nessa coisa de política; aí vou me comprometer. Vou dar uma bela “sobonetada” e dizer que, como cidadão, como carioca, quero o melhor gestor para minha cidade, alguém que pense no coletivo. Um governante só é bom quando usa, de verdade, no seu coração, o “nós” em vez do “eu”. Aí, sim, ele vira um grande líder.
Por Acyr Méra Júnior