Nos últimos anos, a expressão “Medicina Humanizada” tem sido muito ouvida, falada, repetida, mas como funciona na prática? No Rio, veio à tona mais ainda, com a recente morte do grandíssimo cirurgião Ricardo Cruz.
Na teoria, o objetivo da humanização (implantado no ano 2000, pelo Ministério da Saúde) era promover uma nova cultura de atendimento, com consultas mais longas, olho no olho, ouvir o paciente com respeito e enxergar o ser humano além da doença. Porém, isso, na prática, sabemos, raramente acontece. Mesmo com toda a tecnologia hospitalar, não há substituição para a sensibilidade humana e o cuidado de pessoas doentes, ainda mais durante e na pós-pandemia.
Não é de hoje que a pediatra Mariana Sochaczewski, 39 anos, tem esse “outro olhar” para a profissão que escolheu há 20 anos. Enquanto os professores chamavam o paciente pela doença, ela queria saber o nome, a história, a vida e, muitas vezes, virava confidente. E foi, com esse mesmo temperamento, que passou por residências no SUS, UPA (Unidade de Pronto Atendimento), no Hospital Municipal Jesus, em Vila Isabel, onde diz que “foi ali que finquei o pé na humanização”, e, nos últimos cinco anos, na obra social Ambulatório da Praia do Pinto (Jardim Botânico), que fechou em setembro.
Em novembro do ano passado, Mariana inaugurou o Espaço Médico Jardim Botânico, com consultas a preços acessíveis em plena Zona Sul carioca — entre R$ 80 e R$ 100 — e atendimentos humanizados nas áreas de pediatria (a dela), clínica médica (Beth Aragon), nutrição (Gabriela Cavalcante), dermatologia (Juliana Hanszmann) e ginecologia Fernanda Mader). Ela diz que são todas mulheres por pura coincidência.
O perfil “humano” também vem da genética, já que, por pouco, não virou atriz quando fez Teatro Tablado. Ela é filha única da atriz Renata Sorrah com o ator e diretor Marcos Paulo (1951-2012), irmã da atriz Giulia Costa (por parte de pai, do casamento de Marcos com Flávia Alessandra), além de três primos na carreira artística. O sobrenome vem do RG da mãe, Renata Leonardo Pereira Sochaczewski.
É mais loucura fazer Medicina ou ser artista? Como você foi parar na Medicina?
Eu sou o patinho feio da família. A gente se acostuma a ter mãe e pai trabalhando no teatro, na TV e, para mim, aquilo acontecia em todas as casas. Quanto à profissão, eles sempre me deixaram livre para escolher. Gostar de cuidar é uma característica nata – de bichos, de gente, de tudo. Acho que me apaixonei pela Medicina numa aula de Biologia. Cheguei a fazer Tablado por alguns anos e acredito que a memória afetiva em cuidar de crianças pode vir daí, porque, para lidar com elas, tem que ser artista. Extravaso a genética desse jeito (rsrs). O lado artístico é o da observação ao outro, e temos que ter isso na Medicina.
Por que o interesse pela Medicina Humanizada?
A realidade, na maioria dos casos, é um atendimento mecânico, em todas as esferas; tanto faz se você tem plano, é um particular caríssimo ou SUS. Claro que a gente cria um escudo em muitos momentos, principalmente nas Emergências, em CTI, nesses setores que requer uma ação rápida sem passar pelo sentimento. No entanto, o pensamento humano nunca esteve longe de mim – nunca pensei na doença, mas em tratar pessoas. Hoje, as faculdades mudaram muito com esse trabalho de humanização, mas antigamente eram poucas como eu. Mas não foi uma coisa proposital, e hoje estudo e me dedico muito ao assunto. Falar de Medicina Humanizada é redundância, sem ser humanizada, é ciência, não é Medicina.
O que é para um leigo a Medicina Humanizada? Existem médicos que acham isso uma besteira?
Pior do que isso: o profissional acha que isso é ter uma clínica com chão de mármore, com um piano de cauda na entrada, flores, atender com estetoscópio de bichinho… Isso é hotelaria. Tudo bem ter, mas você não pode olhar o paciente como uma fonte de renda, e não pode chamar paciente de cliente. Existem umas definições que falam que é atender à necessidade do paciente. Eu já entendo que vai além e é vestir a ciência com trajes humanos, porque você não deixa de usar tecnologias, mas, no atendimento, tem que ter respeito, acolhimento, empatia, escuta, e o principal: individualizar o atendimento. Se é uma mulher, ela não é igual a todas; se é uma paciente negra, ela não é igual a todas as mulheres negras. Esse atendimento tem que ser inserido na formação do médico, não como um valor extra.
A eficácia, de maneira geral, pode ser ampliada com esse tipo de atendimento?
Sem dúvida. Li um artigo numa revista americana comprovando que os pacientes negros sentem menos dor quando são atendidos por médicos negros, o que vale para outra etnias. Ou seja, é empatia, é se olhar no outro, ter confiança. Eu atendo criança e vejo isso quando a resposta vem quando a mãe traz o segundo filho, o terceiro, quando a gente ganha algo de presente. Sempre anoto o nome da escola, dos coleguinhas para falar na próxima consulta e criar um elo. Eu gosto de explicar tudo, e isso muda a maneira de lidar e ajuda muito no tratamento.
A pandemia trouxe ainda mais uma, digamos, necessidade de ter esse olhar?
A pandemia colocou um holofote. Se o médico não entendeu isso, não está vivendo entre nós. As necessidades e as queixas mudaram radicalmente, e a gente pouco prescreveu remédio nesse tempo de isolamento. Na pediatria, por exemplo, as crianças ficaram longe da escola, relacionaram-se menos com outras crianças, então as viroses não se alastraram, mas o consultório ficou cheio de ansiedade, depressão, questões familiares, insônia, obesidade. A consulta mudou, e tivemos que escutar as famílias. Também atendi online e por telefone; as questões eram desde a má alimentação até as mães reclamando dos filhos em casa. O médico que não tem esse olhar para o paciente deve ter sofrido demais. E que a gente tenha consciência e leve isso para o resto da vida.
Seria o futuro da Medicina para poucos? Ou é uma tendência mundial?
Tem que ser. Acho que, antes da Medicina Humanizada, tem que ter a humanização da humanidade, porque estamos muito ruins de olhar para o outro. Ou a gente tira o olhar do nosso umbigo, ou esse mundo vai acabar. Não vejo saída.
Como o Espaço Médico Jardim Botânico prega isso?
Sempre tive o olhar diferente até para onde eu gostaria de trabalhar. Passei por hospitais municipais, SUS, mas foi no Hospital Municipal Jesus, em Vila Isabel, que finquei meu pé na humanização. Sempre tive vontade de ter uma coisa minha, mas não sabia o que seria. Eu já tinha essa sala no Jardim Botânico, que não usava, e comecei a atender com um valor acessível. Mas queria ter mais especialidades para o paciente não precisar ser encaminhado para outro lugar. E é uma sorte que esteja trabalhando com pessoas que pensam como eu. Por acaso, a nossa ginecologista, Fernanda Mader, é sobrinha da Malu Mader e tem uma história muito parecida com a minha. Conheço-a desde pequena, porque meu pai namorou a Malu, mas não nos víamos há 25 anos. Ela me procurou querendo trabalhar na clínica. Eu acho que, quando você tem esse foco no outro, atrai pessoas que pensam da mesma forma. Atendemos qualquer pessoa, temos parcerias com laboratórios de imagem para conseguir preços menores, parceria com uma dentista; então fizemos uma rede e isso é lindo. É pra todo mundo, mas queremos chegar às pessoas que não podem pagar uma consulta cara — o SUS não está dando conta.
Como é ser filha da “Heleninha Roitman”?
Uma vez eu estava num plantão de Neonatal da Maternidade Pro Matre, no Centro, que nem existe mais, e eu nunca falei sobre meus pais; nunca usei isso pra nada. Se a minha mãe fosse arquiteta, acho que falaria até mais. Depois de um ano lá, os colegas de trabalho descobriram, e parecia um zoológico. Mas a curiosidade é natural. Como a filha de Renata Sorrah e Marcos Paulo está aqui, dando plantão num hospital, à noite? As pessoas glamourizam muito a vida do artista, mas não é bem assim. E não é só minha mãe: meu pai, minha irmã (Giulia, filha da Flavia Alessandra), eu tenho três primos em SP que fazem teatro, então é uma família muito artística. Eu sou o patinho feio, mas é tão bom… A cara dos meus pais explodindo de orgulho quando eu me formei foi o máximo.