Assim que começou a pandemia, em março, a produtora cultural Joana Henning Generoso, 35, sócia da produtora Escarlate, pôs os funcionários em home office, mudou todo o cronograma e fez adaptações. Isolada desde então, mas nunca desconectada, ela tem acompanhado tudo de uma chácara próxima a São Paulo, com o marido, Pedro Parente (ex-ministro do Planejamento no governo FHC e presidente da Petrobras na administração Temer), e dos filhos Davi, de 15 anos, e Anita, 5.
A empresa tem sede em São Paulo e um escritório no Rio, que foi fechado, quando surgiu o coronavírus, para conter custos. A produtora foi fundada em 2016, tendo como sócio, à época, e por apenas seis meses, o ex-ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, atual secretário da área de São Paulo.
Com a tímida pós-pandemia, o primeiro longa da empresa é o lançamento de “De perto ela não é normal”, comédia escrita e estrelada por Suzana Pires, adaptada da peça que levou mais de 500 mil espectadores ao teatro, uma coprodução da Globo Filmes, e elenco de artistas, tais como: Ivete Sangalo, Angélica, Samantha Schmütz, Henri Castelli, Heloísa Perissé, Gaby Amarantos, Marcos Caruso, Ricardo Pereira, e Jane Di Castro (em seu último trabalho).
O ineditismo é que o filme, em cartaz nos cinemas desde a quinta (29/10), vai também estar, uma semana depois, no streaming (Telecine). Além disso, é o primeiro longa brasileiro a ter a cláusula de inclusão para mulheres, negros e LGBT+.
Em pré-produção, também está um documentário sobre as queimadas do Pantanal, a série documental “Quem Matou Celso Daniel”, sobre o assassinado do ex-prefeito de Santo André, em janeiro de 2002; “A Juíza”, sobre o assassinato de Patrícia Acioli, em 2011; o “Música Conecta”, um documentário com Alice Caymmi, além de dois longas que dependem do fim da pandemia.
O empreendedorismo de Joana vem desde a infância. Ela nasceu em Brasília, e seu primeiro trabalho foi aos 11 anos, como vendedora de uma loja de brinquedos; à época, não se falava sobre exploração infantil. Aos 15, começou a fazer aula de circo, experiência que mudou sua vida e moldou, para sempre, suas estratégias profissionais. Dois anos depois, fundou a ONG Rua do Circo, com aulas para moradores de rua. “O circo tem características muito fortes: a construção da lona, do espetáculo, e é tudo uma grande comunidade que tem que funcionar”. Além disso, é formada em Administração e em canto lírico pela Escola de Música de Brasília. Morou no Rio por 12 anos, para onde veio em busca do audiovisual — e o encontrou!
Como funcionou a Escarlate na pandemia?
A gente não parou. Pusemos todo mundo em home office, em março, e resolvemos adiar o “De perto ela não é normal”, o que foi uma decisão meio chocante na época, mas não poderíamos expor ninguém a risco. Temos uma equipe fixa reduzida e muitos terceirizados; hoje estamos com cinco equipes de projetos plugadas na Escarlate. Trabalhamos em coprodução, correalização — nunca estamos sozinhos. Quando trabalhamos de forma plugada, com outras empresas, conseguimos ampliar a inteligência estratégica e customizar a produção. Tem funcionado muito bem. Além de tudo, é sustentável, economiza luz, água e folha de pagamento.
Teve prejuízo?
Ano passado, trabalhamos muito numa plataforma de construção de conteúdo. Com a pandemia, tivemos que adiar o lançamento porque não daria para investir em tecnologia com pessoas precisando pagar as contas e reorganizar a vida. Pegamos o fundo que tínhamos captado para o projeto, fizemos um alinhamento com os investidores e transformamos esse investimento num fundo de crise covid. Como não podíamos filmar, construímos novos projetos e remodelamos outros. A ideia para Celso Daniel, por exemplo, era lançar primeiro a série e depois, o filme. Invertemos a lógica: secar orçamento, enxugar set de filmagem e criar um roteiro que faça depender de menos locações e equipes. Para o audiovisual, é um período de muita transformação, não só pela pandemia como também pela mudança na lógica dos investimentos com as tecnologias das plataformas que estão chegando ao Brasil e mudam o perfil do espectador.
Você também tem feito caminhos alternativos para não ser tão dependente da Ancine e do Fundo Setorial do Audiovisual, as principais fontes de financiamento do cinema nacional?
Eu sempre friso que não sou contra subsídio público. Todos os cases de sucesso no mundo têm investimento do governo. A Coreia do Sul só virou polo de cinema porque o governo incentivou (a exemplo de “Parasita”, vencedor de quatro Oscar 2020). O que estamos tentando desconstruir na Escarlate é que, para se ter liberdade de construção nos modelos de negócios, temos que agir por conta própria, e, não, ficarmos escravos de uma coisa ideológica e política. Temos muitos projetos de cunho político e social, mas numa estratégia que faça sentido e que ele se pague. Nesse aspecto, trazer outras empresas para serem sócias do projeto é fundamental porque o risco fica dividido.
Por falar em subsídios, o casamento com Pedro Parente (em 2018, quando ele ainda era presidente da Petrobras) atrapalhou seus projetos?
Acredito que todos os relacionamentos — e tem gente que discorda de mim — são passíveis de renúncias; o mais importante é entender se elas são saudáveis. Essa foi uma das nossas primeiras conversas depois que já estávamos indo para o caminho de um relacionamento sério. Eu tinha, na época, dois projetos na Petrobras, renunciados — isso foi uma coisa madura e tranquila. Na época, foi um pouco assustador para a empresa, porque eu tinha duas sócias que não tinham nada a ver com as minhas loucuras. Mas foi um investimento certeiro: hoje temos uma estrutura que dá abertura até para mercados internacionais, e tudo isso por causa do meu casamento. Faço o mea culpa com as sócias, mas valeu a pena. A questão é que o Pedro é da transparência, do correto, da credibilidade; sabia disso até antes do primeiro encontro.
Quantas produções no momento?
Estamos com 30 projetos, cinco deles só esperando a realidade da covid acalmar para entendermos um cronograma seguro. Nosso próximo projeto é um documentário sobre as queimadas. Estamos trocando pneu com o carro andando e não podemos perder a oportunidade. Vamos aproveitar para fazer uma campanha de engajamento digital, porque a ideia era pedir doações. No entanto, todo mundo está precisando de dinheiro; então criamos a “Doe sua timeline”, em que as pessoas compartilham em suas redes informações à população de como preservar o meio ambiente para que situações como essas não aconteçam mais, com curadoria da ONG World Wide Fund for Nature (WWF). Tem o Celso Daniel e “A Juíza”, que ainda vão entrar em pré-produção, mais dois longas que dependem do fim da pandemia. Também estamos produzindo o “Música Conecta”, um documentário com a Alice Caymmi, e um encontro de gerações musicais bem interessante, com temas bem diversos, mas sempre atrelado a alguma causa social.
Foi fácil sua entrada no mercado do cinema, sendo jovem e mulher?
Eu comecei a Escarlate com o Sérgio (Sá Leitão), que saiu em seis meses; desde então, é só mulher. Temos homens parceiros, agregados, mas o núcleo de direção e coordenação é sempre um bando de mulher, e é maravilhoso. No início, existiram episódios de retaliação, mas sempre foi assim a minha vida inteira. Lidei com isso desde os 15 anos, quando comecei a fazer espetáculo de circo na rua, e lido hoje também, acreditando no foco. Se estou aqui para fazer um filme, é porque sou capaz e você acredita se quiser. Compreendo que, às vezes, os negócios demoram mais para fechar pelo fato de mulher, mas não tenho medo de argumentar sobre minha competência. Se não rolar, a gente grita no chuveiro, dá uma xingada, sai para beber com as amigas e segue em frente. No entanto, tenho visto que o mundo corporativo tem tentado mudar a postura. A minha geração não vai viver esse benefício, mas, se minha filha (Anita, 5 anos) puder ter um caminho melhor para ser uma boa profissional, já está valendo.
Por que uma comédia como lançamento da produtora?
A gente não escolheu, mas era o mais maduro que tínhamos estrategicamente e mais viável. E com outro ponto: todos os nossos filmes têm uma causa social. É uma comédia popular, comercial e tal, mas fala sobre empoderamento feminino, a jornada de uma mulher em busca de si mesma. O filme é leve, divertido, mas ele tem um motivo para existir. Quando se fala de feminismo, sororidade, a pessoa não se interessa, mas quando ela assiste a uma comédia sobre o assunto, começa a refletir sobre algumas condições que ela normalmente aceitaria sem pensar, e isso cutuca o espectador.
E para você, de perto ninguém é normal?
Eu não sou. Não sei você! (gargalhadas). Acho que esse filme fala disso. Quando você acredita no que você é ou no padrão que foi imposto, e não questiona isso dentro de você, as coisas podem dar errado, e você nem sabe o motivo. Então eu acho que de perto ninguém é normal mesmo, e é muito legal enfrentar as anormalidades que temos dentro de nós. Eu sou superadepta da psicanálise até porque o outro não tem nada a ver com a sua maluquice.
Alguma curiosidade sobre bastidores?
Foi a última produção da Jane Di Castro; fomos pegos de surpresa com sua morte. Ela interpreta uma funcionária do INSS, e disse que estava muito feliz de a personagem ter dado vida para ela na comédia. Muito triste ela não ter conseguido assistir. Tenho um áudio muito legal dela, na verdade, uma “reclamação”. Nos créditos do filme, colocamos uma foto de criança do elenco principal e pedimos uma foto dela. Jane demorou, demorou a enviar porque só tinha foto como menino; daí ela disse: “Só pude virar menina depois que eu conheci a arte”. Achei tão singelo e, claro, colocamos a foto dela de menino.
Essa cláusula de inclusão veio para ficar?
A cláusula é um pouco complicada porque lida com subjetividade, porque tem que incluir diversidade não só de gênero como de territorialidade, dentro das premissas do roteiro e equipe técnica. Ela tem uma inteligência maior do que a cota, porque não é só número, tem que ter qualidade. O roteiro de “De perto” teve que ser reescrito pela cláusula. Isso veio para quebrar estereótipos que são preconceituosos e a gente nem percebe. Não é, mas deveria ser obrigatório para todas as produções porque precisamos estimular e lançar muita coisa com essa premissa para mostrar que essa cláusula não é um bicho de sete cabeças.
Saudades do Rio?
Morei por 12 anos no Rio, até 2016, para entrar no audiovisual. Fiz cursos na FGV e foi aí que tudo começou. Antes da pandemia, eu ia toda semana à cidade e estava maravilhada com a facilidade do bate e volta. Minha sócia mora no Rio. Eu me mudei para São Paulo muito mais pelo meu filho, que tem 15 anos, porque o Rio não é muito seguro para adolescentes. No início, estava com meu coração dolorido, mas vi que era fácil e relaxei. Não posso perder aquela vista do horizonte tomando um vinho com Ricardo Amaral e com o Boni (de Oliveira). Isso são coisas que não fazem o menor sentido fora do Rio. Saudade de uma roda de samba da Gamboa, que você não faz ideia!