Sempre cultivei o projeto de, aos 50 anos, dar uma parada no trabalho e cumprir um período sabático. Por essas coincidências da vida, o timing acabou sendo perfeito. Dois meses antes de completar 50, eu estava para entrar em uma nova etapa do trabalho, e não estava nada entusiasmado com as perspectivas. Além disso, um relacionamento amoroso (breve, mas intenso e importante) chegou ao fim. Era a hora da mudança.
Os meses anteriores haviam sido de muito stress, e eu sentia uma necessidade de desconexão total, de tudo e de todos. Eu conhecia muitas pessoas que haviam feito o Caminho de Santiago, sabia bem do que se tratava, de modo que a opção surgiu naturalmente. O que mais me atraía era o fato de ser um lugar onde não há, em absoluto, decisões para tomar: você acorda de manhã e anda, e nem sequer precisa pensar para onde vai: basta colocar um pé adiante do outro e deixar (ou não) o pensamento fluir.
Minha decisão surpreendeu a muitos amigos. Primeiro, porque a ideia de percorrer 800 quilômetros (acabariam sendo 900) a pé é um tanto amalucada, mesmo. Segundo, porque as pessoas normalmente associam o Caminho de Santiago a uma busca espiritual, ou mística, e esse não é meu perfil (aliás, não é o perfil de quase ninguém no Caminho: quem o faz por motivos místicos é uma minoria). Deixei a perplexidade dos amigos para trás, e fui.
O Caminho de Santiago é o melhor lugar do mundo para quem quer refrescar a cabeça ou pensar. A liberdade é absoluta, cada um faz o que quer, não há decisões a tomar; a vida é simples, barata, descomplicada, escorre sem pressa, cada peregrino no seu ritmo — o Caminho físico é um só, mas cada um percorre seu próprio caminho interno. E ninguém enche o saco de ninguém.
Há muitos relatos sobre o Caminho que falam de epifanias e revelações esotéricas. Se isso de fato ocorre, não sei. Sei que não aconteceu comigo, nem com nenhum de meus companheiros de caminhada. Mas não é verdade que o Caminho não mude as pessoas: ele exige que você entre em contato consigo mesmo de muitas maneiras, e é uma experiência profunda e transformadora.
O Caminho obriga o peregrino a tomar consciência de seu corpo, de sua disposição física e mental, e torna-o 100% responsável por seu destino, mas, ao mesmo tempo, o estimula a abrir mão do controle. Faz com que conheça profundamente os problemas dos outros (frequentemente maiores do que os seus), mas, ao mesmo tempo, lhe ensina a não julgá-los.
O ritmo lento e a simplicidade botam muita coisa em perspectiva. Por que tanta pressa, tanta correria, por que o dinheiro tem tanta importância, por que o sucesso profissional é tão relevante, por que a gente complica coisas que poderiam, deveriam, ser simples?
O Caminho de Santiago costuma ser uma das experiências mais profundas e importantes da vida de alguém. Quem faz o Caminho, começa se perguntando por que está lá — e termina se perguntando quando o fará novamente. Comigo não é diferente. E, nestes tempos de pandemia, o impulso de sair caminhando por aí se torna quase incontrolável.
Ricardo Rangel, escritor, jornalista, colunista da revista Veja, está lançando “O Caminho é o Destino — Uma Crônica do Caminho de Santiago”, pela Edições de Janeiro, onde conta o que viveu e sentiu nos quase 900 km a pé, pelo norte da Espanha. Dia 1 de outubro, tem live com o autor e os jornalistas convidados Cora Ronai, Mariliz Pereira Jorge e Pedro Doria, direto da livraria Argumento. Há quem ache que pode até ser das melhores desta pandemia.