Tenho uma admiradora secreta. Daquelas que mandam, uma atrás da outra, cartas em envelopes coloridos.
Não sei ao certo como conseguiu meu endereço. Talvez indo de prédio em prédio, no meu condomínio, com um retrato na mão, como quem procura um foragido da polícia.
Depois da primeira carta — que abri por curiosidade e deixei de ler já no primeiro parágrafo, ao perceber do que se tratava — todas as outras continuam fechadas. Não sei sequer se são anônimas ou assinadas. Se a assinatura é um nome ou um pseudônimo.
Não li porque não são para mim. São para uma figura imaginária, que só existe na cabeça de quem as escreveu. São um delírio. Ia usar outra palavra — ilusão — porque me parecia um jogo, uma ironia, uma brincadeira (de “ilusão” vêm os ilusionistas), e também um erro de julgamento. Mas delírio soa melhor.
Entre os romanos, “delirium” era o ato de o arado sair do sulco. Um desvio, um descaminho. Por extensão, delirar passou a ser o mesmo que alucinar, agir como louco.
Minha admiradora delira. Em vez de cavar o sulco onde possa semear, ela revolve o solo, em vão — e o arruína. Ou será que acredita mesmo que irá conquistar alguém com constrangimentos e inconveniências? Usando artifícios para driblar o porteiro e entrar no prédio? Truques para forçar um encontro indesejado?
Mas, sim, ela ama. Porque há três tipos de amor.
No primeiro, ama-se o Outro (quero fazer o Outro feliz): é o amor altruísta. No segundo, ama- se a si mesmo (quero me fazer feliz, e para isso me valho do Outro, que apenas serve ao meu desejo): é o amor egoísta. E, por fim, por último, no fundo do poço da miséria amorosa, ama-se estar amando. É o amor que impõe humilhações a quem acha que ama e coação a quem faz, a contragosto, o papel de amado. O Outro não importa, assim como não importa o Eu: só existe o amor esvaziado de sentido, trôpego feito um zumbi que se move sem vida, sem rumo e sem esperança de redenção.
Minha admiradora vive esse amor malsão. Que é capaz de crimes passionais (quem ama a si ou ao Outro não mata). De vexames públicos (quem ama a si ou ao Outro não se avilta). Que não acaba em beijo, mas em Boletim de Ocorrência.
(Fosse o assédio de um homem a uma mulher, certamente já teria havido uma medida restritiva. Mas o condomínio recebeu uma notificação, os porteiros estão alertados para não cair novamente no golpe do “Posso entrar? Estou com medo de ser assaltada aqui na calçada” e as cartas já estão com um advogado.)
Talvez amor e o não-amor é que nos elejam; seriam eles que decidiriam onde querem se instalar. Nós, os amantes, estaríamos na mesma categoria dos bonecos de ventríloquo, dos fantoches — sem culpa nenhuma.
Talvez não — e nos seja dada a escolha da forma de amar. E a responsabilidade por ela.
Na minha mesa de cabeceira, há um exemplar de “O amor companheiro” do psicanalista Francisco Daudt. Ali se fala do amor que vai além da paixão e da excitação romântica. Que envolve “o acolhimento da nossa maior autenticidade, o descanso dos papéis sociais representados; a tolerância sem superioridade com nossa mesquinharias”. É nesse amor que floresce o que Steven Pinker chama de “altruísmo recíproco”, um jogo como o frescobol, em que não há perdedores ou vencedores, apenas pessoas se divertindo juntas.
Eu quero é a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida. Não, maçã envenenada não serve.