O ano de 2020 há de ser lembrado de uma maneira que ainda não somos capazes de compreender. Ainda está em curso, e, apesar de todos os esforços racionais e místicos, a futurologia não é um conhecimento que a humanidade pratique com sabedoria. Vê-se isso pela degradação desenfreada da natureza: jogamos esgoto hoje, na água que vamos beber amanhã! Degradamos os princípios da humanidade, criados para nos proteger de nós mesmos; degradamos o trabalho que alimentará as futuras gerações. Assim vamos vivendo, insistindo em complicar coisas simples.
Diante dos fatos que ultrapassam nossa compreensão, é inevitável (se não é, deveria ser!) a reflexão sobre essas tais coisas simples que seriam fonte da felicidade e harmonia. Para seus filhos pequenos, que não o deixavam trabalhar numa noite chuvosa, Vinicius de Moraes explicou que a poesia é um jeito simples de dizer coisas complicadas. Ah, se a poesia invadisse nossas vidas! Essa capacidade de se entregar à poesia, e fazer dela o próprio sentido da existência, pressupõe uma coragem, uma fé na vida, que os céticos definiriam como irresponsabilidade.
A capacidade de desdobrar o tempo e colocar as questões básicas da existência de forma transparente é um ato concreto. É um fazer cotidiano ao qual o poeta dedicou a sua vida. Muitas vezes me foi incômodo o parentesco com Vinicius, meu avô. Era cobrança demais, intensidade demais, curiosidade demais sobre um alguém com quem pouco convivi — quando ele morreu, eu tinha 6 anos. Lembro a última vez que nos vimos: cheguei com minha mãe à sua casa, na Gávea; a minha memória vem em flashes de filme afetivo muito animado. Lembro-me dele sentado na cabeceira de uma mesa grande, com um monte de gente conversando, dando risada. Lembro tanto o seu sorriso e que ele chamava tudo e todos por um diminutivo carinhoso.
As memórias são difusas e se confundem com memórias da família, amigos e de completos desconhecidos. A necessidade de aprender sobre a enormidade do passado que envolvia a existência de Vinicius impulsionou uma jornada através da literatura, música, história e da cultura em geral, mas principalmente do Brasil.
Aprendi Vinicius, lendo Manuel Bandeira, Drummond, Mário de Andrade, Cruz e Souza, Clarice Lispector; ouvindo jazz, Pixinguinha e Ismael Silva; nas pinturas de Di Cavalcanti, Portinari, Tarsila; nas ruas de Ouro Preto; e nas obras de Aleijadinho. E também vivendo o dilema de realizar o amor a um país tão maravilhoso e tão cruel com sua gente. De volta à obra de Vinicius, deparei com um sentimento genuíno de interesse pelo outro – sentimento esse que não era imune às deformações de seu tempo, mas que tinha tal força e caráter, que era capaz de superar os preconceitos.
Vinicius, em sua busca desenfreada pelo lirismo em tudo o que vive, criou um Brasil possível, um país que se projetava para além de suas impossibilidades. Remediar a desorientação é um ato físico. Um único passo dado em direção ao passado já transforma nossa compreensão do presente. As gerações que vieram antes de nós sabiam disso.
Capitaneados pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1972, colecionadores, escritores e suas famílias doaram seus documentos pessoais para a Associação Museu de Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Ruy Barbosa, no casarão histórico na Rua São Clemente, em Botafogo.
Essa instituição, criada em 1930, é uma fonte pública onde é possível acessar documentos originais, raridades que contam a história de nossas semelhanças, da cultura, da língua e das profundas rachaduras em nossa sociedade. É uma memória que nos une, com um valor que não pode ser mensurado, preservada por um corpo de funcionários públicos que, ao longo de décadas, faz um trabalho primoroso.
Seguindo o exemplo de acervos nacionais e internacionais, a família de Vinicius de Moraes, em parceria com a Casa de Ruy Barbosa e o Itaú Cultural, iniciou o projeto de digitalização de seus originais. Em breve, sua produção intelectual estará disponível na Internet, organizada na forma de um mapa de acesso à sua criação. Vinicius de Moraes, esse brasileiro do mundo, pleno de consciência de si, do valor de sua cultura, mais uma vez, levanta a sua casa imaginária e nos ensina que, entre o passado e o futuro, está a arte do presente, e o presente não é um instante — dura uma vida das muitas vidas que temos o compromisso amoroso de preservar.
Esse trabalho de coordenação geral que estou fazendo junto à Casa de Ruy me traz ao coração um avô que eu pouco conheci, mas que todo mundo conhece. Minha relação com meu avô ficou ainda maior depois que ele partiu. Isso é uma jornada pessoal, é o que tanta gente fala.
Júlia Moraes é carioca, mãe de Francisco, neta de Vinicius de Moraes. Estudou cinema na Universidade Federal Fluminense, é produtora, diretora audiovisual e idealizadora do projeto do Acervo Digital de Vinicius de Moraes.