No mês do orgulho LGBT, comemorado mundialmente em 28 de junho, a coluna conversou com Valentina Sampaio. Você já deve ter ligado o nome à pessoa, senão é porque provavelmente, está na lista dos distraídos, em todos os sentidos.
Nascer em Aquiraz, uma vila de pescadores em Fortaleza, Ceará, e ser filha de uma professora e um pescador não foram problemas para ela, mesmo num país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a ONG Transgender Europe. E, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 124 transgêneros, entre homens e mulheres transexuais, transmasculinos e travestis, foram assassinadas por transfobia.
O sonho de ser modelo era maior. Seu nome esteve em praticamente todos os veículos no ano passado, depois de posar para o catálogo da linha “Pink”, da Victoria’s Secret, tornando-se a primeira mulher trans no time de modelos da marca — onde já estiveram Gisele Bündchen e Tyra Banks, por exemplo. O caminho não foi fácil. Para fazer parte do catálogo, passou por uma série de testes e entrevistas até a aprovação.
Quando começou a carreira, aos 16 anos, logo de cara foi chamada para ser embaixadora da L’Oréal Paris em 2016. No mesmo ano, estreou na São Paulo Fashion Week (SPFW). Em 2017, foi a primeira trans na capa da Vogue Paris, o que lhe rendeu recorde de desfiles e capas. Daí pra frente, sucesso até cansar (se fosse possível — rsrsrs), incluindo a estreia no cinema, como protagonista de “Berenice Procura” (2017), com Vera Holtz, Eduardo Moscovis e Cláudia Abreu.
Essa pandemia afetou seu trabalho de algum modo? Mudou, ou está mudando o que, pessoalmente, pra você?
A pandemia afetou completamente todo o mercado, sem dúvidas. Os trabalhos tiveram que ser postergados ou têm acontecido de novas maneiras, como os ensaios feitos por videoconferência, por exemplo. De quebra, tenho usado este momento para passar mais tempo comigo mesma. As conversas têm sido mais longas, podemos nos dedicar mais a quem está ao nosso redor, e isso é uma forma de usar esse desafio a nosso favor.
Considerando (o que muita gente supõe) que sairemos deste “momento Covid” mais evoluídos, acha possível que o preconceito com relação às trans pode mudar?
Eu sonho com isso, com o dia em que nós, trans, sejamos menos alvo do preconceito, mas infelizmente acho que não é uma realidade tão próxima assim. Espero que, deste momento atual, as pessoas possam tirar boas lições e serem mais empáticas.
Está fazendo algo a favor dos outros durante esta crise?
Sim, tenho me dedicado a algumas ações que apoio, voltadas a pessoas trans vulneráveis neste momento.
Algum dia você já lutou contra rótulos, vindo depois observar a importância de lutar pelas trans? (Sabemos que o BR é o país que mais mata transexuais, em pleno 2020).
No Brasil, nós, trans, ainda somos julgadas como inferiores, somos marginalizadas. Infelizmente, não temos oportunidades na sociedade e no mercado de trabalho, mas estamos lutando pelos nossos direitos. Sem dúvidas, é uma luta diária. Procuro usar a visibilidade desta profissão e me colocar de forma didática, afinal isso é uma maneira de combater o preconceito.
Olhando pra você, não é difícil notar o gênero feminino. Sempre foi assim? Sempre se sentiu como menina?
Sim, desde que me entendo por gente. Sempre soube quem sou e ninguém pode me tirar esse direito de naturalmente poder ser quem sou em minha essência.
Você já passou por momentos, digamos, delicados, seja numa paquera, num encontro, profissional, enfim, algo que a tenha marcado nesse sentido? E o que deixou em você
A gente passa por muitos momentos e situações difíceis; logo nos meus primeiros trabalhos, enfrentei muito preconceito. Depois de estar na mídia, também sofri com comentários preconceituosos, mas procuro não deixar isso me abalar. Uso como um impulso para seguir adiante.
Você acredita que o mundo encaretou? Já que as discussões sobre racismo, transfobia, homofobia estão mais atuais e necessárias do que nunca?
Eu acho que é uma questão de cada indivíduo, mas, no geral, há sim um retrocesso. Devemos nos manter firmes e fortes para continuarmos dando passos para frente, para evoluir. É de extrema importância que essa questão seja falada, e que sejamos ouvidas, não só agora em junho, mas todos os dias, pois nós existimos, estamos aqui, sempre estivemos e sempre vamos estar.
Você disse que, na sua cidade, nunca sofreu preconceito, mas que sofreu bullying quando começou a aparecer. Como foi e é isso pra você e o que mudou do início de carreira pra cá?
O caminho foi árduo até aqui, mas hoje sou mais forte, mais madura para enfrentar situações que muitas vezes eu não sabia como lidar. Por muito tempo da minha vida, me senti inferior diante da sociedade, que nos faz sentir assim quando você não se enquadra nos padrões que lhe são impostos. Hoje, aprendi a lidar com isso, e sei exigir o respeito que mereço como ser humano.
Quais seus próximos passos?
Estou orando para que tudo isso acabe logo e todos fiquem bem, e que possamos retomar nossas vidas. Tenho vários projetos que já estavam em andamento, mas, por conta da pandemia, foram adiados. Não vejo a hora de poder compartilhar com todos vocês meus novos projetos, mas só serão lançados depois da pandemia.
Foto: divulgação