Há 36 anos, Amyr Klink atravessou, a remo, o Atlântico Sul durante cem dias, apenas acompanhado de tubarões, ondas gigantes, baleias e tartarugas. Em 1990, passou 13 meses na Antártica, em seu veleiro, sete deles imobilizados em uma baía. Oito anos depois, completou a circunavegação polar em 88 dias, depois de encarar enormes icebergs e tempestades — tudo isso, sozinho. Conhecido por best sellers, como “Cem dias entre o céu e o mar” e “Mar sem fim”, e palestrante disputadíssimo (de 600 a 700 palestras por ano), esse paulista de 64 anos nunca pensou que viver um isolamento social imposto fosse tão desafiador. “Com toda a experiência que nós temos, está duro, viu?”.
Embora seja contra a quarentena, Amyr pensa no coletivo e faz analogias como se estivesse num barco em mar aberto, sob tempestades indomáveis: “Cada pessoa que colocou um parafuso na embarcação foi importante para o sucesso das jornadas”. Ele tem seguido as recomendações de ficar em casa, em São Paulo, ao lado da família: a mulher, Marina Klink, as três filhas, Laura, Tamara e Marininha, e seus cachorros.
Continua trabalhando já que, para chegar ao escritório, bastam alguns passos. No entanto, desde o ano passado, já experimenta o home office com os quase 40 funcionários de suas empresas: a sede paulista, a Marina em Paraty (RJ), e negócios em Santa Catarina e na Bahia. Além disso, emprega, indiretamente, 500 pessoas; nenhum foi demitido. Para Klink, o fim da pandemia pode trazer ensinamentos sobre tolerância e valorização de aspectos do cotidiano e civilidade.
Onde você estava quando tudo começou?
Os últimos seis meses foram os mais legais da minha vida em termos de viagem. Eu jamais poderia imaginar que tudo que vivi seria uma experiência quase do passado. Fui para a Antártica três vezes, com meu primeiro barco, Parati, de 30 anos, que foi totalmente reformado, desde novembro — uma viagem linda com quatro amigos. Quando a pandemia começou, eu estava voltando da Antártica e pegamos uma condição meteorológica muito dura. Reparei que as mudanças climáticas estão mais acentuadas, a frequência dos ventos, acima dos 180 km por hora — nunca tinha visto algo assim. Paramos o barco nas Ilhas Malvinas, e entendi que as usaria, ali, como base para os próximos anos. Deixamos o barco lá e pegamos um dos últimos voos para SP. Li uma entrevista do cineasta Fernando Meirelles, na qual ele falava que qualquer roteirista que chegasse com essa história em janeiro, ele mandaria o cara vazar por ser absurdamente fora da realidade…
E como anda sua quarentena?
Sou totalmente contra essa babaquice de quarentena; é uma estupidez. Não tem embasamento científico para dizer que ficar isolado produz resultado, mas temos a obrigação de colaborar. Não acredito, mas sou entusiasta absoluto do isolamento, neste momento, porque foi a única forma que descobrimos para poder sair do buraco. Eu queria ter uma bomba d’água agora, mas não tenho; então uso o balde para tirar água e evitar o naufrágio. O isolamento é um balde. Ele vai resolver? Não sei. Acho que não. Preferiria uma bomba de 200 cavalos, que seca o barco, e sairíamos fora da encrenca; mas só temos o balde. Paciência, já que não temos perspectiva de quando vai acabar… Não concordo com o que estão impondo pra gente, porque somos manipulados, mas acho que, neste momento, temos que ter espírito de colaboração, do coletivo. Tenho o privilégio de ter minha empresa do lado de casa e vou trabalhar com um único funcionário. Não demiti ninguém na nossa base nem na marina de Paraty. Desde o ano passado, começamos o processo de trabalhar em casa, porque estou com vontade de ficar mais rico, viajar mais e ter menos coisas.
Está preocupado com o contágio?
Não estou preocupado de a minha família ficar doente, de eu morrer por causa do coronavírus. Mesmo se minhas filhas ou mulher ficarem acometidas ou se eu morrer amanhã, não tenho medo dessa forma de impacto. Se for assim, paciência. Estou muito preocupado com o impacto social num país que não está preparado para isso. Vou insistir. Não estou preocupado com meus investimentos, bancos, nada, mas vamos ter um sofrimento social brutal por razões econômicas. Esse impacto está acontecendo agora, gerando fome, violência, vingança e saques. Por alguma razão, esse vírus ataca as comunidades mais ricas. Não vejo, proporcionalmente, ocorrências, com a mesma frequência, em populações miseráveis. Os bairros mais atingidos de SP são os ricos (Vila Nova Conceição, Morumbi, Moema, Itaim Bibi) — muito estranho. Tenho amigos muito simples que moram em favelas e insistem em falar que isso é “doença de rico”, que tudo continua igual, com os bailes funk acontecendo todos os fins de semana. De qualquer maneira, a forma de contribuir é o isolamento horizontal. Concordando ou não, acho questão de cidadania, que o brasileiro ainda não entendeu. Não interessa em quem você votou nas eleições; todos participaram do processo. Nós elegemos uma turba de políticos incompetentes — ou não —, e é importante que tomemos decisão comum; uma delas é o isolamento para quem não está na linha de frente.
Sente que está num constante marasmo?
Adoraria estar na linha de frente, porque me recuso a morrer no sofá, assistindo à Netflix. Quero lutar, com faca na mão, bomba, controlando a tempestade; no entanto, não sou profissional da Saúde. Queria ir para a rua, trazer soluções reais; não sou médico, mas tenho senso prático e vejo que tem muita coisa errada. Acho um desrespeito dos meus vizinhos irem para aquelas máquinas de ginástica, contaminando as barras, que nem uns calhordas. Sou contra a quarentena, mas, se é para resolver o problema de todos, vamos fazer juntos: não é andar com os filhos na praça, tomar sol no parque.
Você foi muito afetado com as palestras?
Palestras são feitas por oportunistas falando sobre o que não conhecem, filósofos que teorizam suas teses. Só falo sobre o que eu fiz. Recuso-me a comparar o que faço, ou transformar isso em analogia para quem trabalha. Mas eu tenho uma demanda grande; as presenciais foram canceladas, mas agora estão acontecendo virtualmente, em várias plataformas, então continuei. É uma parte do meu trabalho que quero reduzir porque ela compromete minha agenda. Eu gosto de ter uma agenda com uma certa liberdade para fazer coisas inúteis, porém relevantes. No ano passado, tive uma demanda grande (600 a 700); posso atender a ¼ disso. Mesmo assim, é muita coisa, mas é uma remuneração importante para quem trabalha no escritório. Não quero mais ficar oito meses por ano comprometido com esses eventos, por isso começamos a pensar em não ter uma base física. O processo veio em boa hora.
No seu ponto de vista, como vai ser o mundo pós-Covid?
Todos vão ter queda na receita e ter de encarar esse processo dolorido. Não estou otimista com o futuro. Se estivéssemos na França, Espanha, África do Sul, Índia ou China, eu não estaria preocupado. Gostaria de dizer que o mundo vai ficar mais colaborativo, mais cooperativo, que a gente vai pensar na essência, dispensar o supérfluo, ser mais eficiente. Na prática, porém, isso não vai acontecer – quando há um colapso econômico dessa magnitude, existe um preço social. Acredito que vamos ter que mudar o modo de pensar, trabalhar, repensar os problemas de mobilidade, as políticas fiscais, trabalhistas, tributárias, e, no Brasil, está havendo um oportunismo político grotesco.
Mas você acredita no Brasil?
O Brasil é um país que não tem grandes tragédias. Vivemos problemas cíclicos, carências permanentes, mas nunca passamos por processos profundos de crise. E é surpreendente, porque existem pessoas humildes bilionárias de conhecimento e pessoas bilionárias de dinheiro completamente estúpidas. A nossa classe política representa o que nós somos: uma nação ignorante, uma nação egoísta, oportunista e criminosa. Faz parte da nossa índole. Temos o “jeitinho” de sair na frente, furar fila, atacar o caminhão que capotou com laranja e roubar a carga. Isso faz parte da nossa cultura, e mudar é um processo que leva duas gerações. Mas eu acredito. As nações mais criminosas do mundo, Austrália e Nova Zelândia, tornaram-se referência de ética e respeito. O brasileiro também é rápido para aprender. Politicamente, estamos muito mal representados analiticamente, mas, no aspecto de justiça equitativa, representa o que somos — esses caras que estão aí. Por outro lado, acho que estamos num período da história da humanidade em que as verdades não são mais as mesmas. Vamos ter que mudar de atitude. Somos um país criativo, eloquente, onde a comunicação é fácil. Contudo, matamos aí 50, 60 mil pessoas por ano, no trânsito, o mesmo número de assassinatos violentos, o mesmo de estupro a mulheres ou feminicídio, e os números não revelados são três, quatro mais vezes que isso. Ou seja, não temos nada de bonzinhos. Acho que estamos sendo obrigados a pensar no barco, no todo; vamos aprender muito.
E qual a diferença de um isolamento voluntário?
Eu tenho uma baita experiência em confinamentos extremamente radicais, em espaços minúsculos, com um grau de escassez que a maioria das pessoas nem de longe conhece, mas foram intencionais. Não estou tirando isso de letra, estou sofrendo mais do que a maioria porque, nas expedições, eu tinha um propósito e um objetivo. Não gosto de planejamento, mas da conclusão. E o brasileiro não está acostumado com essa etapa do processo. Faço planos malucos e os executo sempre antes do tempo. Mas o brasileiro é bom em se virar. Se cair uma bomba e explodir a casa, ele vai morar no galinheiro; explodiu o galinheiro, ele vai morar na esquina… E assim, com esse senso de adaptação, muitos ficaram ricos, milionários, não tiveram medo de empreender. O que não acontece com parte dos intelectuais, ligados ao poder público, que é preguiçosa, covarde e só pensa em seus direitos. Se compararmos, num barco não existe direito, só obrigação e isso faz a gente ficar humilde e pensar em conjunto, no grupo, no todo. O lado positivo dessa encrenca é esse: nossa salvação é o todo.
Pelo que está observando, o que você acha que está errado?
Faço barcos há anos e tenho algumas obsessões, entre elas, a simplicidade e a eficiência. Comecei a navegar numa canoa a remo, e hoje, em barcos fantásticos, de tecnologias inéditas no mundo. Há 20 anos, não usamos torneiras com as mãos — a gente controla com os pés. Essa história de lavar as mãos para conter o coronavírus não serve pra porcaria nenhuma. Você ensaboa, acaba de lavar e tem que fechar a torneira de inox ou latão, redondas, e você esfrega a mão numa superfície infectada. Você é esperto, ok, desinfeta a torneira, mas tem a maçaneta da porta do banheiro com a chave, onde você é obrigado a colocar a mão limpa num local contaminado. Por que a gente não evolui no design? Nenhuma porta no mundo deveria ter maçaneta, mas sensor de presença, pelo amor de Deus! O Brasil tem um design porco. Nenhum bosta de arquiteto brasileiro sabe desenhar um sistema de não contato. Nesse sentido vai ser bom.
O que mais?
Tenho amigos em todos os níveis sociais, coisas que os intelectuais não têm porque vivem numa bolha elitizada. No entanto, tenho amigos no tráfico, na favela, no crime, donos de bancos, e a gente sabe que vai passar por um processo de mudança de valores; então gosto de ouvir opiniões. “Fica em casa” o escambau! Quando você vê um monte de celebridades, de biquíni, na cobertura do condomínio, é um acinte. Meus amigos que moram nas favelas não têm casa, moram na rua, na obra e, quando têm casa, é um cômodo para 10 pessoas. É lindo estar numa cobertura, com piscina de borda infinita – uma hipocrisia tão chocante!
O que essa experiência pode acrescentar para as pessoas?
É um momento inédito. Nenhum especialista pode dar um palpite. Estou vendo profissionais da Saúde falando besteira, em gestão, crise, confinamento. É uma situação em que dependemos do espírito de colaboração. Num mundo polarizado como o nosso, isso fica meio chamuscado porque temos uma coragem enorme como teclado para ofender todo mundo. Até pessoas lúcidas têm dificuldade de entender que a gente joga junto e não somos adversários. Vamos ganhar civilidade.
Você julga mais perigosas as feras do mar ou as da Terra?
As feras humanas são as mais perigosas. Eu já vivi situação de risco em que, se tiver um fio de cabelo fora do lugar, você morre. Hoje, os conflitos étnicos, religiosos e sociais são muito mais perigosos. O grande sofrimento pelo qual estamos passando com a pandemia é a indefinição. Ela é uma tortura. Onde há pressão externa, as pessoas mudam os hábitos e tornam-se mais colaborativas.
numero:13 E algum plano pós-coronavírus?
Eu dei entrevista para um caderno de turismo e elenquei os lugares mais lindos do mundo que eu adoraria conhecer. Mas o que eu vou fazer mesmo é ir ao boteco mais sujo que tiver na esquina daqui de casa, e comer um ovo colorido com meus amigos, beber uma cerveja. Nem gosto de cerveja, mas vou encher a cara. Bater no peito, gritar. Não gosto de futebol, mas quero gritar contra algum time, fazer coisas normais que a gente fazia e não sabia que eram tão valiosas. Isso é que é engraçado. E eu tenho um desafio a mais. Saio de casa para o trabalho (no mesmo terreno) para não gerar conflito. Mas eu tenho um problema especial porque vivo num universo feminino. Filhas, sogras, funcionárias…, então tenho uma certa falta de suporte masculino para poder falar porcaria. Sou obrigado a conviver com jovens em casa, num mundo absolutamente politicamente correto, que não é o mundo que me agrada.