Doenças, hospital, família a volta do leito. Corrupção, empreiteiras, mordomia. Homossexualidade, vergonha, revelação. Imaturidade, drogas, dependência. Aposentadoria precoce, solidão, subordinação. Pai déspota, mãe submissa, família disfuncional. Morte, segredos. Infelicidade. Desenvolvida em tempo real, como no filme “Festim diabólico”, de Hitchcock, “A tropa”, primeiro texto de Gustavo Pinheiro, consegue que todas essas palavras ganhem significado ainda maior.
Com a coragem de construir uma trama — centrada em diálogos formados por frases curtas — que discute a angústia presente dos personagens, assim como aponta para fatos acontecidos no passado, Gustavo Pinheiro é um autor maduro, com as doses equilibradas entre palavras, ações. O recurso de iluminar o personagem nos textos de flash-back é elemento dramatúrgico importante para manter a coerência do fluxo narrativo.
“A tropa” se passa durante a visita de quatro filhos ao pai, hospitalizado em consequência de uma queda. É quase que um jogo de basquete, de quatro (os filhos) contra um (o pai), no qual cada um marca pontos, corta, defende e impede o outro de jogar. Uma verdadeira babel, o encontro. O pai (coronel do Exército, autoritário, adepto da ditadura), excelente composição de Otávio Augusto, é rodeado pelos quatro filhos, todos nomeados a partir dos ditadores — Humberto, Arthur, Emílio, Ernesto, João Baptista, interpretados por Alexandre Menezes, Daniel Marano, Edu Fernandes e Rafael Morpanini. Os atores, ainda que não possuam o físico do papel — mais jovens do que os personagens, conseguem transmitir as diferenças entre os irmãos. Todos são uns fracassados na vida, esforçando-se para aparentar bem-estar, harmonia familiar e os caminhos equivocados em que foram lançados.
A direção de César Augusto encontra a firme sintonia entre a ironia fina dos textos, o impacto da revelação dos fatos, a movimentação e o compromisso da atuação de tempo real. Não há exageros e, muito menos, trejeitos, naturalismo, nem tentativa alguma de paródia. O caminho escolhido demonstra que César Augusto é diretor versátil e sempre capaz de imprimir ao texto as nuances do significado que o autor quer alcançar. Atenua o drama da situação, mas, sem nenhum perdão e sem pieguismo, permite que a força da cena final provoque impacto, sem quebrar o ritmo natural de toda a peça.
Mesmo considerando que tudo acontece pelo texto, pela voz, pelos diálogos, pois trancados em um pequeno espaço limitado de um quarto de hospital, com um personagem principal imóvel, “A tropa” consegue alcançar um significado atual e permanente, apesar de contar uma história com origem em traumas pessoais, sociais e históricos que se referem a um período difícil da nação brasileira. O choque entre os horrores da ditadura e uma vida aparentemente normal, um personagem que tem todos os elementos da falta de afeto — marido repressor, pai violento —, focado em sua própria vida, em enaltecer o que é inaceitável (a falta de liberdade), faz com que o sentido seja centrado na capacidade de se renegar aquilo que nos destrói e faz mal. É o pai, mas ele não.
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