Uma das características das epidemias é o desejo de identificar verdades universais sobre como as sociedades reagem a doenças contagiosas. Trata-se da eterna busca de uma verdade absoluta e que, geralmente, vem acompanhada de porta-vozes, muitos deles, “profetas do Apocalipse”.
“A Peste”, livro de Albert Camus, ilustra bem essa característica. Nele, lemos como as epidemias seguem um drama de três atos. Em primeiro lugar, num primeiro ato, os cidadãos tendem a ignorar ou negar os indícios de que algo terrível está acontecendo, até que a aceleração da doença e as mortes forçam os relutantes a aceitar o fato. Isso aconteceu, explicitamente, na Itália (e, em algum grau, em todos os lugares). No entanto, existem fatores na Itália que são hábitos culturais da população. Portanto, esse fato joga por terra, através da especificidade de cada lugar, a existência de uma verdade única para a epidemia. Cada lugar tem os seus problemas típicos, isto é, muitas variáveis são introduzidas, piorando ou melhorando a situação.
Aí começa o segundo ato, no qual as pessoas percebem a gravidade e demandam ou oferecem explicações. Essas, por sua vez, são, na sua maioria, mecânicas e moralistas (incluindo as religiosas) e geram reações públicas. Como não existe uma única explicação, as pessoas entram em pânico pelas explicações contraditórias.
As reações da fragilidade psíquica causada pelo pânico geram o terceiro ato, que pode ser ainda mais dramático e destrutivo do que a doença em si mesma. A desorganização mental das pessoas, causada pelo medo, torna-as mais “frágeis” (na realidade, mais vulneráveis e sensíveis do que frágeis), e todo mundo se sente como uma vítima em potencial do Mal que ronda todos os lugares. Aí tem início o aspecto terrível do terceiro ato: o desejo de culpar alguém. Dos judeus na peste bubônica da Idade Média até os comedores de morcego nos mercados chineses, alguém deve ser culpado. Esse discurso de culpa explora e expõe as divisões existentes de religião, raça, política, etnicidade, classe e gênero.
Aqui, no Brasil, logo surgiu o mesquinho conflito político entre direita e esquerda, com a esquerda e a imprensa — ambas ressentidas com a perda de privilégios — sedentas por culpar o presidente de direita por ele ter “negligenciado” as leis corretas para conter a epidemia. Eis a contradição: negam e sabotam o tempo todo a autoridade do presidente, negam sua representatividade, mas, nessas horas, exigem que ele seja o exemplo.
Mas será que eles seguiriam se o presidente fosse o porta-voz de medidas? Enquanto isso, surgem os que só se preocupam em destituir o presidente, criando uma lei pessoal para a destituição — movida por crenças geradas por falsas suposições científicas ou jurídicas —, como se fosse a verdade absoluta. Num momento grave, em vez de solidariedade, esses indivíduos estão preocupados com provocações e baixarias.
As autoridades numa epidemia respondem (e sempre foi assim) com quarentena, isolamento, etc. Esse passo, geralmente, envolve pessoas com poder e privilégios impondo intervenções sobre as pessoas sem poder e privilégio — uma dinâmica que alimenta mais ainda o conflito social. A divisão de classes fica evidente. No Brasil, a divisão de privilegiados é nítida: de um lado, o STF e o Congresso; de outro, o povo. Os privilegiados tiveram acesso rápido aos testes do coronavírus, voam em jatos particulares, não trabalham, estão em casa isolados. Enquanto isso, a população sofre com os critérios de quem merece fazer esse exame ou não.
A lentidão em reconhecer a importância de uma Justiça que puna de fato os crimes graves e não protele a segunda instância faz com que muitas pessoas se sintam mais seguras para cometer delitos do que com medo das punições. Isso pode gerar a violência do terceiro ato. No Centro do Rio, com tudo fechado, sem ter como pedir esmola e comida, os cracudos estão atacando as pessoas como nesses filmes de mortos-vivos.
O coronavírus é novo, mas a humanidade já viu tudo isso acontecer.
Cada sociedade tem sua especificidade, o que mostra a complexidade do problema. O agente patogênico surgiu na China — não é de surpreender. A China gerou muitas epidemias no passado; lá, as pessoas são lentas em reconhecer as ameaças a qualquer coisa. Camus descreveu muito bem essa burocrática lentidão. A China é uma exemplar sociedade burocrática de mandarins. Lá, as autoridades tentaram suprimir os alertas precoces, embora, depois, tenham reagido de forma eficaz e inédita na História. Isso sempre ocorre: não foi privilégio do nosso presidente a estupidez de minimizar primeiro, para depois admitir.
Depois da negação inicial, governos reagem sempre de forma autoritária. E, certamente, a China é um dos governos mais autoritários e totalitários do mundo; democracia nem faz parte do vocabulário deles. Contudo, reagiu forte, para conter a epidemia; ao mesmo tempo, tem muitos trabalhos científicos para oferecer.
As epidemias, no terceiro ato, geram pressão nas sociedades, para criar soluções, enquanto revelam estruturas latentes, que, de outra forma, poderiam não ser tão evidentes. Elas também revelam o que é realmente importante para a população e o que ou quem ela realmente valoriza.
Um mundo complexo exige soluções complexas e pensamento complexo. As soluções, até agora, são as mesmas que foram empregadas na Idade Média. Isso, certamente, deve causar recessão econômica, divisão mais acentuada de classes e tudo de ruim que pode existir.
Quem sou eu, como psicanalista, para, neste momento, oferecer qualquer solução? Faço aqui minhas as palavras de Fernando Pessoa, em “A Tabacaria”: “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo; por isso, posso ouvir quem deseja ser escutado. Um grande passo numa sociedade que se encontra surda, cega e muda pelo medo”.