Há algumas semanas, venho lidando, como todos, com a nova doença vinda de Wuhan. Inicialmente, otimista que sou, tentei diminuir o tamanho do problema. Minha primeira reação, como da maioria dos brasileiros, foi diminuir mentalmente sua dimensão: estava a dois oceanos de distância, “Deus é brasileiro”, “é só uma gripe”, os americanos exageram tudo, o Brasil não vai parar! Valia tudo para acreditar que a doença não chegaria aqui com as consequências socioeconômicas devastadoras que têm assolado o resto do mundo. Mas a doença chegou. E chegou em casa: meus pais foram infectados. Graças a Deus, para ela e para ele, que é médico como eu (Noel Lima), de fato, está sendo um leve resfriado.
A notícia de que minha mãe havia testado positivo se deu uma hora antes de embarcarmos para a Bahia, onde seria padrinho no casamento do meu melhor amigo e onde a família toda comemoraria o aniversário de um ano da minha filha. Eu me vi diante de um dilema: volto para casa resignado, sem celebrar o aniversário da minha filha e com um amigo entristecido, ou corro o risco de estar eu mesmo contagiando outras pessoas a caminho do casamento e na festa em si? Por ser médico, a resposta era clara. Nem sequer entramos no aeroporto, e fomos para o hospital testar a família inteira. Dois dias depois, o diagnóstico foi confirmado no meu pai.
Mais um dilema: somos uma família de médicos. O que fazer com os pacientes com os quais meus pais tiveram contato após a contaminação? Não há nenhuma diretriz clara nesse sentido, apenas quarentena a partir do diagnóstico. Optamos por avisar abertamente a todos que ficassem vigilantes e evitassem espalhar a doença nos próximos dias. Não foi uma decisão fácil, mas só entenderíamos o peso dela horas depois, quando nos tornamos o centro das atenções da cidade e o telefone não parava de tocar. Meus pais nem ao menos conseguiram manter o repouso indicado. Muitos dos telefonemas e mensagens eram para confirmar se estavam doentes, e não para saber se estava tudo bem e precisavam de ajuda.
Minha mulher foi comprar álcool gel na farmácia e precisou brigar com um homem que queria levar o estoque inteiro. Influenciadores digitais que moram nos EUA estão recomendando brasileiros a fazer estoques de comida imediatamente — o apocalipse chegou. Pude então perceber claramente que o mundo está doente — e a culpa não é do coronavírus. Vivemos numa época em que nunca foi tão fácil disseminar medo e pânico, em que fake news se espalham muito mais rápido que qualquer vírus. Nessas horas é que o pior lado do ser humano vem à tona. Veja bem, estou falando do “fenômeno” Covid-19, e não da manifestação biológica em si. Não há dúvidas de que esta “gripe” é letal para uma parcela da população; muitos já morreram. Precisamos, sem dúvida, tomar medidas para evitar que continue se alastrando, principalmente para proteger os mais frágeis. Tenho certeza de que tomei a decisão certa, cancelando minha viagem e pecando pelo excesso de zelo. Mas me pergunto o quanto o Covid-19 já causou de estragos pelo vírus em si, e o quanto causou de estragos pela nossa reatividade, pela “mentalidade de manada”.
Como médico, posso citar uma dúzia de doenças mais letais com as quais convivemos diariamente, sem que as prateleiras dos mercados fiquem vazias. Agora, o Brasil está numa encruzilhada, e medidas serão adotadas nos próximos dias que determinarão nossa qualidade de vida, a saúde da população, e da economia por muito tempo. A Itália nos ensinou uma lição: não subestimemos a doença. Eu acho que o Brasil pode ensinar também: adaptando-se a esta nova realidade, contendo o contágio, tomando algumas duras medidas, mas sem histeria e com senso de coletividade. Eis o dilema do médico: como educar a população, como conter a crise, sem criar pânico e somar a histeria coletiva? Faço o que posso: oriento àqueles que querem me ouvir que devem mudar seus comportamentos, seguir recomendações estabelecidas, protegerem-se para proteger os demais — com consciência, com compaixão, sem medo.
O vírus do medo é, na minha opinião, maior que o coronavírus, maior do que qualquer doença. Não basta lavar as mãos. Precisamos expandir a consciência atrofiada daqueles que ainda não se infectaram com o Covid-19, mas com o vírus mais perigoso. Isso em nada diminui os cuidados práticos que devemos ter, mas, ao mudarmos a forma como olhamos para o mundo, mudamos o mundo. Que todos fiquem bem.
Victor Lima é médico cirurgião plástico, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, com consultório em Botafogo, apaixonado pela profissão. Nas últimas semanas, dedicou muito tempo ao coronavírus. (Foto: Isabela Neiva Ribeiro)