A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz mostra, com muita propriedade, que, em momentos de crise ou de mudanças institucionais, o campo da história se torna muitas vezes um campo de guerra. Travam-se batalhas pelo monopólio da “verdade” e se criam ou reativam mitos, de modo a produzir uma versão do passado que melhor justifique projetos políticos no poder.
Em qualquer lugar do mundo, as coisas funcionam assim, e, no Brasil, não é diferente. Só que, muitas vezes, aqui nos parece pior, pois sofremos na própria carne as diatribes autoritárias de indivíduos acocorados nos poleiros da política e em outras instituições. A história da corrupção é produto dessas tentativas autoritárias de manter o poder a todo o custo, usando mitologias para iludir a população.
A mitologia de o Brasil ser um país harmônico e sem conflitos; o de que seria avesso a qualquer forma de hierarquia; o de que não existiriam ódios raciais, de religião e de gênero; e o mito do caráter especial de nossa natureza consagrado pelo megalomaníaco mote Deus é brasileiro! — como mostra a brilhante antropóloga — foram e são objeto de constante manipulação e apropriação, usados em geral para adocicar uma realidade que teima em se mostrar complexa e amarga.
Sai governo, entra governo, e seus personagens são pródigos em contradizer a mitologia do brasileiro boa praça, Zé Carioca, amistoso, solidário. Não interessa se o governo é de esquerda ou de direita — em ambas as facções, o autoritarismo brasileiro está encravado nos protagonistas do cenário público.
Para abrir a lista do faço-questão-de-ser- autoritário, não posso esquecer a pomposidade do Ministro Marco Aurélio Mello do STF, grosseiramente repreendendo uma advogada (aliás sua colega de profissão) por ter, na ansiedade do debate, tê-lo chamado de “você”. Acaso ele não percebeu o “erro” pela ansiedade? Por que precisava mostrar a “superioridade” do seu cargo? Esse autoritarismo descortês é só o “rito” do cargo, como exigia — mal-humorado — o juiz?
Todos os dias, lemos e assistimos a exemplos de autoritarismo se esparramando e sendo noticiados pela imprensa. O deputado Glauber, do PSOL, exerce o seu “direito” a uma fala violentamente autoritária e com pretensões hierárquicas sobre o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro. Ele o difama de “capanga da família Bolsonaro”, acusa-o de mentiroso, como se ele, deputado, não o fosse, pois seu partido é líder em instigar o ódio e se achar dono da “verdade”.
O ministro responde, dizendo que o deputado é um “desqualificado”, e o presidente da mesa, dessa lamentável sessão “democrática”, autoritária e leninisticamente, censurou a reação do ministro, mas não a raivosa e má-intencionada agressão do deputado. Dois pesos, duas medidas do autoritarismo grotesco e maquiavélico, fazendo desse Congresso um teste diário para nossa resiliência democrática. Um Congresso de pura ação e reação, mas sem Pensamento.
O ex-presidente Lula, líder de uma facção política notoriamente antirreligiosa, com muitas expressões em seu histórico de preconceitos das mais diversas naturezas (começando pela leitura), resolve visitar o papa, um personagem também muito autoritário. Qual a finalidade desse teatro? Pedir perdão por seus crimes com a sentença emperrada pela famosa protelatória segunda instância? Ou, mais uma vez, manipular a mitologia brasileira do bom sujeito para angariar votos?
O atual Presidente da República, que tem muitos exemplos diários de autoritarismo, faz o gesto de uma “banana” para os jornalistas, merecedores da mesma, pois teimam em noticiar de forma tendenciosa e provinciana. Não se admirem as emissoras e órgãos de comunicação, que entram no jogo, por perderem audiência e credibilidade pela burrice tendenciosa.
Querem autoritarismo mais provinciano do que os cineastas brasileiros falando mal do nosso país na entrega do Oscar? Todavia, estavam vestidos com trajes de gala (estavam cumprindo o rito) e, certamente, foram beber champanhe e comer caviar depois da festa. É a famosa “esquerda caviar”, que tem todas as soluções corretas para o País, só que, por pirraça, não as dizem para ninguém. Brasileiro provinciano e/ou autoritário adora falar mal do Brasil quando está no exterior.
O ministro Paulo Guedes, para justificar sua incompetência em regular a destrutiva alta do dólar, acha-se no abusivo direito de dizer como as pessoas devem passar suas férias, além de demonstrar um preconceito social grosseiro contra as babás que vão à Disney levadas por seus patrões. Quanto autoritarismo! Perdeu por não ficar calado.
E daí ministro? Cuide do bem-estar econômico do País e nos deixe decidir onde vamos passar as férias. Nada o senhor tem a ver com elas. Vá o senhor para Foz do Iguaçu, se quiser. Muitos brasileiros — aliás, a maioria deles — têm que viajar para o exterior para ir a congressos, estudar, fazer negócios, representar o País, e dependem do dólar. Vivemos num mundo diferente da sua Casa Grande, senhor Ministro. Não existe mais senzala aqui fora.
Nas raízes psíquicas do autoritarismo, encontramos um tipo de lógica que é a mesma do fanatismo das mais diversas espécies. Trata-se de uma lógica moral que visa a provar a superioridade de um indivíduo sobre o outro. Essa lógica se sustenta pela crueldade implícita nos valores sociais e na rivalidade infantil para satisfazer impulsos assassinos e desejos de saquear e roubar. Seu discurso sempre visa ao exercício da mentira.
Por isso, em todos os exemplos que forneci, tenho razões para pensar no problema mental grave que pode estar por trás do autoritarismo.