O rabino Nilton Bonder, líder espiritual tão importante, é simples e sofisticado, é firme e doce, sabe o valor do silêncio tanto quanto da palavra, e fala de qualquer assunto, da luz à sombra, com conhecimento e categoria, jamais sendo aborrecido. Talvez por isso seja tão popular. Seus livros voam das prateleiras — são mais de 20 títulos publicados e um prêmio Jabuti de literatura, em 2000, além de outros internacionais —, suas palestras são concorridas, empresas desejam sua consultoria, as aulas sobre cabala lotam as salas do centro cultural Midrash, no Leblon.
Um dos seus maiores sucessos editorias, “Alma Imoral” (1998), que virou uma peça de sucesso, em cartaz por 13 anos, com a atriz Clarice Niskier, estreia nos cinemas nacionais em documentário dirigido por Silvio Tendler, a partir do dia 8 de agosto. Bonder também vai lançar um novo livro, nesta segunda (05/08), na Travessa do Leblon, o primeiro volume de uma série de sete sobre o comportamento humano sob a ótica da cabala, “A cabala e a arte da manutenção da carroça — Lidando com a lama, o buraco, o revés e a escassez” (Rocco).
“É um livro para empresários, que devem estar arrancando os cabelos no Brasil neste momento, até qualquer pessoa com problemas num pequeno negócio, e até autônomos. É uma reflexão interessante, profunda, agradável de ler”, diz ele, que convidou o economista Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central, para escrever a orelha, cujo trecho diz: “A um só tempo guia conciso e reflexão profunda sobre a arte e a ciência de fazer negócios e administrar riscos, este livro, com base na cabala e permeado de anedotas de rabinos e carroças, nos convida a refletir sobre o trabalho e a vida”.
Em 1998, a “Alma Imoral” foi lançado; em 2008, revisado, com inclusão do sucesso da peça com Clarice, há 13 anos em cartaz. Era essa sua expectativa? O sucesso tem explicação?
Minha expectativa quanto ao livro era grande. Não podia imaginar que acabaria em teatro, mas sabia da força de um rabino estar apresentando aquele texto. Então havia uma intuição, mas que foi surpreendida pela forma que tomou. Quanto ao sucesso, acho que ele não é algo que se controla, mas tem explicação. No caso da “Alma”, foram bons ingredientes que incluíam texto forte, parceria, ousadia e, claro, uma pitada mágica de sincronicidade e intuição.
Qual seu primeiro sentimento ao saber que a história viraria filme?
Já havíamos pensado em filmar a peça, e foram feitas algumas propostas para levar ao cinema. Quando Silvio Tendler me procurou, achei que seria um bom caminho pela experiência dele e também porque traria uma dimensão mais política para o filme. No teatro, tinha uma pegada mais psicológica, intimista, acompanhando o livro. O filme usa o texto para construir pontes com várias questões da fronteira evolutiva de nosso tempo.
No ano passado, “Alma Imoral” foi traduzido para o hebraico e lançado em Israel. Como foi pra você, e é ainda, dialogar assim com tanta gente?
Ver o texto em hebraico foi muito tocante porque evoca situações bíblicas que pertencem àquela cultura. Confesso, porém, que ver pessoas das mais diversas, muitas com bastante estranhamento dessas fontes me causa mais emoção. O que é particular, se apresentado em seu sentido profundo, é universal. Essa universalidade da “Alma Imoral”, por via de recursos e contexto tão particular, é parte importante de sua magia.
Qual foi a premissa e a motivação para escrever “A cabala e a arte da manutenção da carroça — Lidando com a lama, o buraco, o revés e a escassez”?
No ano passado, fiz uma série de conferências com um matemático, sobre paradoxos e sistemas — ele falando sobre o aspecto lógico e eu, sobre o uso das histórias e metáforas para expressar ideias conflitantes e complementares. Desse encontro, saiu o desejo de fazer uma “análise sistêmica” de sete assuntos através de histórias e tentar, assim, aprofundar conhecimento. O primeiro desses livros é sobre gestão e empreendimento em qualquer área. Tenho como ícone o livro “Zen e a Arte de Manutenção da Motocicleta”, dos anos 1970, além do encontro de uma verdadeira “literatura” de contos sobre carroças. Utilizei-as como simbólicas do empreendimento, dos pequenos negócios. Ficou um material lúdico e profundo, como um livro de crianças para adultos.
Por que um banqueiro (Ilan Goldfajn) assinando a orelha? Espiritualidade e economia casam bem?
Não é exatamente na condição de banqueiro que o procuro, mas de alguém que teve que gerir uma gigantesca carroça que é o Brasil. A economia privada ou pública é uma gestão da vida e da sobrevivência. E como tal, claro que permite leituras e transversalidades no nível espiritual. Um país tem lama, buraco, revés e escassez porque, mesmo sendo uma carroça tão gigantesca, trafega na estrada da vida e está sujeito a suas turbulências.
O tema do livro, principalmente o subtítulo, é atualíssimo com a situação do País. Cite uma relação que você faz com os altos e baixos da vida e o que fazer para superar as fases ruins sem perder a esperança… (Acho que cabe aqui alguma historinha sobre uma das carroças…)
Apresento no livro essa topografia e os cuidados que devemos ter nas descidas e subidas. Nas descidas, há muita instabilidade, e ele é cega. Nos parece que a gravidade a favor permite desatenção, quando na descida é necessária ainda mais gestão. O Brasil hoje está numa subida, e a carga fica muito mais pesada. O desemprego e a escassez que se generaliza exigem orquestramento de esforços, portanto, não só hierárquico, de cima para baixo, mas muita “auto-organização” da sociedade, de baixo para cima.
Como manter uma atitude positiva diante de tantas negativas? Como manter a “carroça” em plena atividade?
A primeira coisa é sair da modalidade reclamação e pessimismo e gerir situações. “Shit happens” (merdas acontecem) em todos os aspectos da vida — na política, na economia, no trabalho, no casamento e em todo e qualquer empreendimento. E gestão é identificar se é por lama, por buraco, por revés ou por escassez. Para cada um, será necessária uma estratégia específica. Confundir esses domínios pode comprometer a gestão e a manutenção dessa carroça.
Como anda o seu estado de espírito com o atual governo e com a humanidade?
Apreensão por ver valores que imaginava consolidados na cidadania e civilidade regredirem tão rápida e disseminadamente. Acredito, porém, que o processo evolutivo é assim; não é apenas regressão e ciclos viciosos que se repetem. Avançamos muito nos conceitos de igualdade, no acesso a informação, na transparência, na sustentabilidade, na inclusão e em tantas outras áreas. Por mais perfeita que pareça a tempestade, confio na consciência humana como uma nau capaz de nos levar de novo a terras seguras.
A cabala é correlacionada com tudo em nosso cotidiano. Por que ela continua tão restrita?
Eu trabalho com o conceito de cabala como uma metainterpretação; nesse lugar, não acho que seja hermética. E nesses trabalhos vou tratá-la em sua capacidade de apontar estruturas e processos sistêmicos. Assim sendo, ela é mais um aplicativo do que um “tesouro de informações secretas”. Sua relação com o cotidiano está em aplicá-la como um método ou filtro para olhar a realidade.
Cite três pontos importantes (e por que) para ter preparo, base, sabedoria, além de um nome tão respeitado, como é o seu caso!
Primeiro, amparo-me em uma sabedoria clássica já lapidada pelo tempo e experiência de tantos que me antecederam. É uma corda no escuro, com certeza. A segunda, ampliar sensibilidade e, para isso, só o outro, a alteridade do olhar do outro pode oferecer. Portanto, partir de identidade somente se acompanhado de sede por diversidade. A terceira, manter um nível de ironia e humor para não se levar tão a sério. Nossos pensamentos são castelos de areia; ao mesmo tempo, são belas manifestações da arte de tentar viver de olhos abertos, despertos. Enfim, ficar mais desperto do que esperto.
Fala-se muito em qual é a missão de cada um, tanto pessoal quanto profissional. Para quem anda perdido, você poderia dar um caminho para essa descoberta?
A vida é abrir-se uma porta que conduz a outras, e adentrar uma outra que leva a tantas outras. Não há manual a não ser correr o risco de escolher uma porta e atravessá-la. O grande problema é ficarmos indecisos e paralisados. Não deixe de atravessar portas — elas contêm riscos, mas nunca o de você desaparecer ou não se encontrar. Sempre que estivermos perdidos, é porque quisemos tornar a última porta aberta como a derradeira e final.