Você sabia que, a cada 40 segundos, uma pessoa tira a própria vida em algum lugar do mundo? Ou seja, são 800 mil mortes por ano, segundo a última pesquisa da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2014. Desde então, o índice tem aumentado entre jovens e adolescentes em todo o Planeta. Os estudiosos afirmam que 90% dos suicídios podem ser evitados se algo fosse feito antes de o gesto irreparável acontecer. Trouxemos esse tema à baila, depois de o principal assunto dos últimos dias ter sido a tentativa de suicídio de um ex-político paulista, sempre em conversas ao pé do ouvido, que é como o tema costuma ser tratado; em casos assim, o que se vê é a linguagem do silêncio.
Falar sobre essa questão poderia ajudar a muitos, digamos, candidatos a tal tragédia. É o que afirma a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, autora de mais de 2 milhões de livros vendidos sob os títulos “Mentes Perigosas”, “Mentes Insaciáveis”, “Mentes Ansiosas”, “Mentes e Manias”, “Mentes Consumistas” e “Mentes Depressivas, da Globo Livros. Ana Beatriz, sempre com consultório lotado e nome frequente em palestras em todo o Brasil, diz que “a questão é informar corretamente, para que as pessoas possam ter como prevenir e saber os motivos pelos quais isso acontece”.
Leia sua entrevista:
Falar sobre suicídio ainda é um tabu?
Um grande tabu, e acho que por ignorância. Tem uma história que aconteceu em 1774, na Europa, quando foi lançado o romance “Os sofrimentos do jovem Werther”, do alemão Johann Wolfgang Von Goethe. Depois do sucesso de vendas, houve um aumento significativo de suicídios entre os jovens que utilizavam o mesmo método do personagem do livro. A partir disso, criou-se uma lenda na imprensa de que não se podia falar sobre suicídio. Isso foi ruim porque criou um tabu, mas, na realidade, o tema foi tratado da maneira errada, porque nunca haviam falado sobre isso antes e, quando o fizeram, foi com uma história triste. Então, a imprensa tem um vácuo, um grande vazio sobre o assunto. A questão não é falar sobre o tema, mas informar corretamente, para que as pessoas possam ter como prevenir e saber os motivos pelos quais isso acontece.
Por que é tão importante falar sobre o assunto?
Porque, hoje, já sabemos que o número de pessoas que cometem suicídio já ultrapassa oficialmente o número daqueles que morrem por homicídio, em guerras ou causas naturais, segundo pesquisa da OMS, em 2014. Temos que estar muito atentos para o fatos de que existe uma epidemia de ansiedade, depressão e suicídio. A cada 40 segundos, uma pessoa se mata ao redor do mundo. É preciso entendermos que o suicídio é uma coisa mais contrária à essência do mecanismo cerebral de sobrevier, nos defendermos para que possamos evoluir. Isso é muito sério — uma epidemia que acomete a sociedade, que é o contrário da essência da vida. Gosto muito de citar as pessoas que acreditam que a vida é muito mais do que isso, que vivemos aqui na Terra, que é uma energia atemporal, com uma morada momentânea física, que é nosso corpo. Eu diria que lutar pela vida é uma luta pelo crescimento espiritual de cada um de nós e que, no fundo, estamos lutando pela humanidade, então combater o suicídio é lutar por toda a humanidade. Costumo citar uma frase do filme “A lista de Schindler”, dita pelo personagem Oscar Schindler (Liam Neeson), que resumetudo isso que falamos sobre o quanto temos que combater o suicídio: “Quem salva uma vida salva uma humanidade inteira!”. Então temos que fazer campanhas públicas sérias pra podermos reverter essa estatística desumana. É de uma total ignorância não combater o suicídio e as causas que podem ser desencadeadas. Também cito o Centro de Valorização da Vida (CVV), que funciona por telefone, Internet, redes sociais, e dizer que eles fazem um trabalho brilhante ao ouvir pessoas na hora do desespero. Ao desabafar, uma pessoa pode seguir sua vida batalhando para tratar do seu problema e da sua vida, que pode, sim, ser muito melhor.
Você acredita que séries de TV, como “13 Reasons Why”, possam ser um gatilho?
Acho que sim, porque o suicídio só é tratado quando existe uma história de ficção, como no livro de 1774, sem que haja uma campanha de fato baseada em algo real. Então, a informação que chega é geralmente da ficção ou ainda quando pessoas muito notórias, como ídolos e cantores se suicidam, e aquilo é noticiado pela imprensa como ato de rebeldia, de protesto. Isso, sim, provoca uma onda de suicídios baseados na ignorância. Séries e divulgação de mortes de famosos podem acontecer, mas antes deveria ter um grande movimento de divulgar o que é o suicídio, por que ele ocorre e como preveni-lo; daí, sim, as pessoas entenderiam que aquilo é uma ficção ou um fato isolado. Ninguém comete suicídio por ideologia, protesto, ou porque vive numa sociedade capitalista, como muitas vezes as pessoas associam. Acontece por desespero absoluto de quem não sabe mais tocar sua vida e tem uma ideia de que deixar de viver seria uma grande saída.
Existe uma versão romantizada do suicídio?
Sim. Desde 1774, as coisas são noticiadas sem o devido valor e informação. Quando o ator Robin Williams (“Sociedade dos Poetas Mortos”) se suicidou, as pessoas disseram que era porque ele não aguentou a dureza da vida, que era uma alma muito sensível. Ele era sensível, um ator extraordinário, mas que, certamente, não tirou a própria vida para mostrar ao mundo a sua sensibilidade ou a dureza da sociedade em que vivemos, até porque ele era um cara que vivia de modo muito privilegiado. Foi desespero de alguém que, independentemente de ser bem-sucedida, sofria com vícios, dependências, depressão e desespero. O suicídio não é protesto, é desespero.
Pela sua experiência, quais os principais motivos que levam ao suicídio?
Não só experiência, mas como estudo! Foi feito um estudo de revisão bibliográfica entre 1959 e 2001, no Brasil, por Alessandra Flashman e José Manuel Bortoloti, da UESP, no qual concluíram que a maioria dos suicídios se dava em pessoas que tinham transtornos mentais, ou seja, sofriam de alguma patologia que causava disfuncional idade do comportamento. Nesse estudo, pudemos ver que 35,8% dos suicídios estavam relacionados a transtornos de humor, ou seja, bipolaridade e depressão recorrente; 22,4%, a uso e abuso de substâncias tóxicas, ou seja, pessoas dependentes de álcool ou cocaína, que acabam deprimindo biologicamente, por conta dessas substâncias; 10,6%, de pessoas que sofrem esquizofrenia; 11,6%, com transtorno de personalidade; e 6,1%, por pessoas que sofrem com ansiedade e transtornos. Ainda tem outros, mas o principal, com certeza, é o transtorno de humor e a bipolaridade no topo dessa cadeia. Por isso, o diagnóstico dos transtornos mentais precisa ser muito precoce e correto, assim como o tratamento. Não tem como brincar com vidas porque, quando uma pessoa se suicida, poucos daqueles que pude presenciar, daquelas pessoas que tentaram e se arrependeram imediatamente depois, tiveram consequências a que o corpo não conseguiu resistir. Então, precisamos ficar muito atentos a isso.
Suicídios são evitáveis?
Sim! Sabemos, através de diversos estudos ao redor do mundo, que 90% dos casos são evitáveis, até porque estão associados a transtornos mentais que, se fossem corretamente diagnosticados e tratados, poderíamos evitá-los. Só para ter uma ideia, a cada 40 segundos, uma pessoa se mata no mundo, e, quando uma pessoa consegue, 20 outras tentaram e fracassaram. Isso é muito ruim! Lembrarmos que cada pessoa que se suicida deixa as pessoas ao seu redor, num convívio mais íntimo, devastadas, pessoas que podem vir a deprimir. Por isso, vemos uma progressão geométrica de uma tragédia que pode ser evitada.
Acredita que as redes sociais, a vida corrida e as consequentes frustrações podem formar um perfil suicida?
Não! O suicídio não é um perfil. O suicida, na maioria dos casos (99%), vem em função dos transtornos mentais. Então, o que acontece é que as pessoas que já sofrem com transtornos mentais podem ser afetadas pelas redes, onde tudo é uma felicidade inexistente, e ativar um gatilho ao acreditarem que a vida delas é péssima em relação a todas as outras, em achar que nunca vai dar conta de nada, que nunca vai ser tão bem-sucedida.
Qual a diferença entre a tristeza e a depressão?
Sempre está na intensidade dos sintomas. Se essa tristeza paralisa a pessoa, muda o seu comportamento, a faz evitar coisas que fazia com prazer, tudo isso é um divisor de águas. Outro divisor são as alterações biológicas — uma pessoa triste não tem insônia, perda de peso ou ganho; já a deprimida tem insônia terminal (dorme e acorda 3 horas depois), não tem prazer em nada, falta energia, pode emagrecer de forma evidente, passa a ter pensamentos negativos intensos. A tristeza comum é aquela que todo mundo tem, um momento de reflexão… É natural que eu fique triste quando alguém que eu amo está doente, se eu tive alguma frustração profissional ou afetiva; aliás, a tristeza é fundamental.
Como a família, amigo ou colega de trabalho podem interferir?
Os amigos e a família podem identificar uma mudança de comportamento que faz com que se comece a entender que a pessoa não está bem. Mas não há como reverter isso sem saber o que a está levando a pensar em tirar a vida. E torno a dizer: é desespero, não é ideologia ou manifestação política, cultural ou ideológica; é desespero de um ser humano.