A Síndrome de Estocolmo é um fenômeno recorrente que corresponde a uma total submissão do torturado pelo torturador, transformando a relação sadomasoquista em um sentimento de amor. Contudo, quando isso acontece de forma inversa? Quando o torturado, capaz de entender a fraqueza do outro, inverte o jogo e torna o torturador seu vassalo? É desse jogo de inversões, de pecados que se transformam em bênçãos, de infratores que se tornam justiceiros, de amizades aparentemente impossíveis, que um dos melhores dramaturgos brasileiros, Jorge de Andrade, esculpe “Milagre na Cela”.
Escrita em 1970, a peça é, ao mesmo tempo, ficção e documentário, ação e reação, pureza e pecado, absolvição e maldição, para retratar os horrores de uma época condensados na abjeção humana. Joana (Ticiana Passos), uma freira, é presa por supostamente acobertar militantes de esquerda. E acaba por fazer que seu algoz, o delegado Danielle (Renato Reston), se apaixone por ela de forma totalmente obsessiva. Em torno deles, gravitam o carcereiro, a mulher de Daniel, uma prostituta presa, Jupira, e um menor infrator, Miguel.
O cenário criativo de José Dias compõe e apoia a opção 7 pelo diretor Chico Suzano de fazer com que o ambiente de clausura, típico de convento, se espraie por todas as cenas. São grades móveis que se batem, unem-se, separam-se, retornam, inclusive nos momentos em que Daniel está com a mulher em casa. Chico Suzano atualiza um texto de quase 50 anos não porque essa temática reaparece, sobretudo no Brasil, na prisão, tortura e genocídio de jovens. A contemporaneidade está na agilidade como os fatos se sucedem e como os diálogos são rápidos, quase que sem pausa como na técnica de edição audiovisual.
A encenação de um texto inédito, no Rio de Jorge de Andrade, autor de peças fundamentais, como “A moratória”, “Os ossos do barão” (que também foi novela de sucesso absoluto) e “Vereda da Salvação”, é um bálsamo de total prazer em um momento de tantas dificuldades do teatro. Primeiro, porque o espetáculo é afinadíssimo com um elenco jovem que consegue trazer força a um texto primoroso; segundo, uma produção corajosa que envolve oito atores; terceiro, porque o resultado é emocionante. Imperdível.
Fotos: Pablo Henriques
Serviço:
Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea)
Sextas e sábados, às 20h
Domingos, às 19h