Lançamentos de livros de Nélida Piñon são alegres, leves festivos e incomuns: os únicos que se sabe com o melhor champagne francês, para brindar uma escritora amada de fora a fora: tanto pelos amigos quanto pelos fãs. Como aconteceu recentemente, com o vigor em dia, no lançamento de “Uma furtiva lágrima” (Record), com reflexões, cotidiano, opinião e, claro, sensibilidades. Na publicação, a carioca fala sobre sua formação, amigos, saúde, trabalho e leituras, mas não se trata de um livro de lembranças: é de encontros e detalhes passados e presentes, dividido em pequenos capítulos, que vão do pessoal ao universal.
Você lançou “Uma furtiva lágrima”, em Portugal. Segundo a crítica local, a publicação é comparável ao “Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa. O que você achou disso?
Emocionei-me, mas, realista como sou, recordei que a lisonja, felizmente passageira, é perniciosa. Importa, sim, prosseguir com a árdua jornada da criação literária.
Por que foi lá, antes do Brasil?
Vivi em Lisboa no último ano. Instalei-me naquela luminosa cidade com o intuito de fazer pesquisas para meu novo romance, enquanto o ia escrevendo. Minha editora portuguesa, Guilhermina Gomes, decidiu então publicar o “Uma Furtiva Lágrima”, aproveitando minha presença e o fato de haver sido contemplada com o prestigioso prêmio Vergílio Ferreira, e o prêmio da Lusofonia, que abrange o universo luso. E ainda pela circunstância da Correntes D’Escritas, o mais reputado congresso em Portugal, ter-me escolhido como a homenageada do encontro, e me dedicado a revistas anual. A editora julgou proveitoso contar com meus últimos dias em Portugal.
Recentemente, você passou um ano em Lisboa. Foi por ser correspondente da Academia das Ciências de Lisboa? Conte-nos essa experiência.
Para esta generosa temporada portuguesa não recorri a nenhuma instituição, bolsa, ou subsídio. Nada, enfim, que aliviasse minhas despesas ou tolhesse minha independência. Assim senti-me uma jovem estudante a contemplar os céus de Lisboa.
Voltando ao livro, você fala da sua infância no Rio, dos passeios com tia Teresa pelo Centro, teatro, cinema, o “sabor de um Rio mágico”. Como carioca, como vê a situação da cidade agora? Algo específico a aflige?
Enquanto cresci, amei o Rio. Não traí a cidade. A vida chegou-me por meio de sua paisagem que apurou minha estética urbana. Conheci bem esta urbe mágica. Sua gente, suas edificações, seus contornos geográficos, seu espírito irônico. Hoje, ela me atemoriza, contraria o seu passado, sua memória heroica. O que dizer dos vândalos que, empenhados em arruiná-la, deram início ao seu fim, e parecem triunfar.
Você usou textos do seu diário quando foi diagnosticada erroneamente, com câncer, em 2015? Como foi esse período de angústia até os exames definitivos? Escrever sobre isso exorciza fantasmas?
Não exorcizei fantasmas inexistentes, ou escombros secretos. A cercania de uma morte anunciada levou-me a repassar a minha e a vida alheia, a organizar o cotidiano, a fazer reflexões civilizatórias. Eram despedidas prévias e cuidados para preservar a dignidade que a morte, em geral, ofende. Fui educada para respeitar valores rigorosamente irrenunciáveis, que tem para mim eficiência moral. Mas conquanto sob uma ameaça que me impunha radical metamorfose, não perdi o amor à vida, aos seres, à arte.
Você entrou para a ABL no dia 3 de maio de 1990, data do seu aniversário. Foi a primeira mulher a se tornar presidente da casa. Pra você, o que significa ser uma imortal? Qual a importância da ABL para um Brasil tão carente de cultura?
Meu conceito de brasilidade reforça a convicção de ser a Academia Brasileira de Letras a mais importante instituição cultural do Brasil. O panteão que abriga talentos provindos de todos os quadrantes da nacionalidade, das diversas classes sociais, do inconteste universo da nossa carne mestiça, de índios, negros e brancos enlaçados. Exemplo é Machado de Assis que, de origem modesta, autodidata, mulato, tartamudo, epilético, tornou-se seu primeiro presidente. E que me inspirou o mote: Se Machado existiu, o Brasil é possível. Capaz, portanto, de superar o antipatriotismo de Brasília.
Sobre a discussão do poder feminino, tão em pauta, o que acha?
Sou uma feminista histórica. O feminismo é um movimento de dimensão universal. Suas raízes vem de longe e propiciaram uma revolução sem sangue, sem uso de arma. Travada no seio da sociedade, não expulsa o convívio social, os seres que as mulheres amam. Apenas reivindica direitos, retificações históricas. Simples assim.
Você conviveu com muitas mulheres fortes. Qual a diferença entre as mulheres de ontem e as de hoje?
Cada época gera mulheres fortes e frágeis. Igual ocorre com os homens. Sobre cada indivíduo, independente do sexo, paira uma sentença de morte ou um alarido libertário. Os que resistem, lutam por um humanismo que nos salve. São seres que se constroem ao amanhecer.
0 Presidente Jair Bolsonaro usa bem o idioma, no jeito e na linguagem?
Nas últimas décadas há no Brasil um total descaso pelo uso da língua. Prevalece a crença de que é possível pensar sem a plenitude da língua. O resultado deste desleixo reflete-se nas nossas imorredouras crises, na indigência educacional, no desrespeito à cultura.