“Estamos ferrados ou coisa bem pior! Rios, lagoas e baías podres. A natureza reage e continuará reagindo cada vez mais e de forma mais intensa”, diz Mário Moscatelli, biólogo cuja vida é dedicada ao meio ambiente. Sente-se bem assim. Há 20 anos, ele sobrevoa a cidade pelo projeto “Olho Verde”, filmando e fotografando as iminentes tragédias “naturais”, como o risco de desabamentos de construções penduradas em encostas, como aconteceu na comunidade do Muzema, na Zona Oeste, nessa quinta-feira (11/04), previsto por ele desde 2014 e em sobrevoo dois dias depois da última enchente, além do olhar atento também às plantas e aos passarinhos.
Nos últimos 30 anos, pela dedicação desse mestre em ecologia, especialista em gestão de ecossistemas costeiros, presidente do Instituto Manguezal, autêntico, fluente e corajoso em suas falas, ajudou a recuperar 2 milhões de metros quadrados de manguezais na Baía de Guanabara, da Ilha grande, Lagoa Rodrigo de Freitas e Sistema Lagunar de Jacarepaguá. Atualmente, esse carioca de Copacabana está pessimista depois das sucessivas tragédias na cidade – a maioria anunciada em suas redes sociais – e avisa que “estamos apenas no início da resposta da natureza por décadas de descaso”. Uma época, teve de fugir do Brasil, ameaçado pelos degradadores dos manguezais. Leia sua entrevista:
Tivemos tragédias anunciadas há muito tempo, como as enxurradas que arrasaram tudo (uma seguida da outra), queda de prédios, encostas, ciclovia, enfim, um caos. Por que os eventos estão cada vez mais próximos um dos outros?
É resultado da soma de todos os erros, a soma de todos os desperdícios de recursos públicos, usados sem prioridade, sem consciência, a soma da impunidade que abriga o poder público, com a passividade da sociedade que apresenta o que eu denomino de “resiliência patológica”, isto é, a capacidade de aceitar o inaceitável. Tudo isso, associado com uma potencial mudança climática. Nossa capacidade de termos ultrapassados todos os limites da incivilidade com o ambiente está gerando esse efeito cascata, que está só no início. Eu ainda espero que a situação piore muito mais. Repito, estamos apenas no início da resposta da natureza por décadas de descaso.
No caso dos problemas causados pelas chuvas (frequentes na cidade), o que poderia ter sido feito para amenizar?
Tudo aquilo que o poder público tem feito de forma tímida, quando faz, isto é, ordenar o uso do solo, implementar políticas de habitação e transporte permanentes e eficientes, dar manutenção ao sistema de drenagem artificial e principalmente natural, fazer campanhas educacionais, pois, se por um lado, o poder público tem se mostrado letárgico, por outro, parcela significativa da população tem se mostrado passiva na cobrança e ativa na degradação; em resumo, é a tempestade perfeita.
E sobre as encostas, a comunidade da Muzema? Você “previu” a tragédia em 2014. Qual seu sentimento agora?
Meu sentimento é de tristeza, impotência, vontade de ir embora, enfim, buscar algum lugar onde eu possa ser de fato útil com meu conhecimento. Sou biólogo, especialista em gestão e recuperação de ecossistemas. Recuperei milhões de metros quadrados de manguezais no estado do Rio; contribuí para a recuperação da Lagoa Rodrigo de Freitas. Luto pelo sistema lagunar desde 1992 e pela Baía de Guanabara desde 1997; denunciei toda essa degradação sistêmica para o mundo durante as Olimpíadas, mas tudo, praticamente, continua na mesma. Como mensageiro, como tradutor do que diz a natureza, não estou sendo eficiente, não estou conseguindo cumprir a minha missão. Se a sociedade não considerar isso importante, as informações que sistematicamente eu apresento, infelizmente rumamos para o colapso, como já aconteceu no passado com sociedades que não se deram conta de que dependiam do ambiente, e não vice-versa.
Você trabalha no projeto “Olho Verde” desde 1997 e tem alertado as autoridades e a população desde então. Alguém está ouvindo ou fazendo alguma coisa?
Devem ouvir, às vezes, quando o assunto explode em alguma catástrofe ou quando a imprensa pressiona, mas resultado prático, tenho de ser sincero, algumas vitórias no varejo e muitas derrotas no atacado. A ficha não caiu, nem para a sociedade tampouco para o poder público, que reflete as demandas potenciais do eleitorado.
Com seus voos aéreos, quais as próximas tragédias que podem ser evitadas e precisam de atenção urgente?
Vidigal, Itanhangá e Morro do Banco. Se chover forte, não precisa ser torrencial, com o solo do jeito que está encharcado e onde estão localizadas essas edificações, é uma questão de tempo para novas tragédias.
O prefeito Marcelo Crivella diz que a cidade “passou no teste”. Só declarou calamidade depois de três dias e disse que foi uma situação corriqueira e que a culpa é do aquecimento global. O que você tem a dizer?
Sugiro que busque recursos no governo Federal ou no Banco Mundial, para políticas permanentes e eficientes de habitação/saneamento/recuperaç ão ambiental/transporte, pois, até o fim do seu mandato, a situação poderá sair do controle de uma forma que nenhum prefeito jamais previu. Estou falando de convulsão social! Parece que os administradores públicos vivem numa outra realidade, diferente da nossa. A situação socioambiental ruma para um colapso em que a natureza virá cobrar a fatura de décadas de descaso. O resto é perda de tempo se discutir – não temos mais esse tempo.
Se você estivesse num cargo de confiança no governo, quais seriam as primeiras medidas que tomaria a favor da cidade?
(01) Primeiro, mandaria minha família para longe do Brasil, pois, para situações excepcionais, precisamos de ações excepcionais, geralmente para lá de amargas e que em nada estão relacionadas com o discurso vaselina da classe política que, no final das contas, visa exclusivamente se manter no poder, custe o que custar, fato que estamos vendo o valor da fatura; (02|) criar um pacto entre todos os poderes envolvidos nessas tragédias, Executivo, Legislativo e Judiciário, visando implementar as ações sem que um poder não atrapalhe a execução das medidas; (03) construção de habitações populares com eficiente sistema de transporte; (04) remoção de edificações em áreas de risco (quantas sejam necessárias), congelar o crescimento das atuais comunidades e combater o aparecimento de novas; (05) recuperação das áreas degradadas com reflorestamento, dragagem de lagoas, criação de parques nas faixas marginais de proteção e renaturalização de rios, usando mão de obra das comunidades vizinhas às recuperações; (06) exigir um cronograma físico-financeiro para as obras de saneamento da cidade, pois essa festa tem que acabar. Isso seria o suficiente para criar uma verdadeira revolução na cidade, contrariando os interesses de grupos públicos e privados que se beneficiam das chagas socioambientais desta cidade. Eu considero que, implementando essas ações iniciais, em 10/15 anos, possamos começar a suspirar e nos preparar para o que já está vindo por aí, em termos de mudanças climáticas. Observação: não haverá tempo, recursos nem atenção para megaeventos na cidade.
Quais sãos os prós e contras em ser um biólogo “ativo” no Rio?
Ser biólogo e cidadão que não gosta de ser feito de trouxa é muito duro. Apesar do apoio recebido de diversos setores do poder público e da sociedade, é claro que esses mesmos setores não têm tanto poder quanto os demais setores que se beneficiam com a degradação. Isso é claro, pois, caso contrário, não estaríamos nessa situação terminal. Já arrumei muita briga, ameaças, intimidações e ultimamente estou respondendo até por processo kafkaniano de calúnia e difamação por conta de uma postagem no Facebook, baseada em informações do próprio poder público apresentadas numa emissora de TV de sinal aberto. Poder ver manguezais se recuperando e, com eles, a fauna associada, poder defender ecossistemas que, apesar de protegidos por lei, continuam sendo dizimados, enfim exercer minha profissão é muito bom, mas cansa e, apesar do espírito “forever young”, o chaci começa a reclamar e o sistema nervoso começa a ratear diante de tamanha barbárie sem perspectivas de melhora. Mas como Ghandi dizia, “primeiro te ignoram, depois riem de ti, depois atacam-te e no fim tu vences”. Como tenho fé na força, acredito estar próximo da vitória, seja ela qual for.
Qual a melhor solução para o Rio?
Os eleitores escolherem melhor seus representantes, os contribuintes cobrarem mais de seus administradores. A sociedade despertar para o abismo que está criando bem debaixo de seus pés.
O que as pessoas podem fazer para ajudar na fiscalização e manutenção das lagoas, rios, oceanos? Vi sua sugestão de que as pessoas produzam vídeos para serem passados nas TVs com as causas das tragédias. Acredita que o projeto vá pra frente?
Existem os Ministérios Públicos estadual e federal, que são os fiscais da lei. Eles precisam ser cobrados e pressionados bem como o Judiciário. Ninguém faz favor a ninguém. A articulação com todas as mídias é fundamental com formadores de opinião, em campanhas permanentes, eventos permanentes, pois não há mais tempo a perder – estamos muito atrasados. Se o projeto vai pra frente? Nunca me preocupo com isso; faço a minha parte com a consciência de que o preço da vanguarda é a solidão.
Em seus voos no Rio, qual foi a pior coisa que já viu e as “tranqueiras” mais inusitadas descartadas em lagoas, rios e oceanos?
Tem de tudo: pedaços de corpos boiando, sofás boiando em lagoas, máquinas de lavar, pneus, caixas d’água, tudo que se possa imaginar. Não consigo determinar o que seja pior.
Você já disse: “As pessoas se acostumaram a ficar no meio do lixo e mergulhar na merda. É o homo porcus (violentus,violentus). Parece até filme do madmax”. Como está a situação das praias cariocas e como podem ficar daqui a 20 anos?
As praias são o produto do saneamento que, em pleno século XXI, é o que é no Rio, com a turma que ganha, vivendo na negação, onde tudo está caminhando. Tem a outra turma que se acostumou a mergulhar, pegar onda na merda… Aí é questão de gosto e sistema imunológico de cada um. Francamente, no momento, eu vejo de forma “realisticamente pessimista”, pois, enquanto a ocupação urbana for desordenada e o saneamento não for universalizado e praticado com excelência, a praia será um dos destinos de todo esse “cocoshake”.
Na galeria, fotos dos voos de Mário Moscatelli pelo projeto “Olho Verde”:
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